A DORMIÇÃO DA SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS, A BEM AVENTURADA VIRGEM MARIA - LITURGIA DIÁRIA , 22 DE MAIO DE 2014
quarta-feira, 21 de maio de 2014
Quem ama ardentemente alguma coisa costuma trazer o seu nome nos lábios e nela pensar noite e dia. Não se me censure, pois, se pronuncio este terceiro panegírico da Mãe do meu Deus, como oferenda em honra da sua partida. Isso não será favor para ela mas servirá a mim mesmo e a vós, aqui presentes - divina e santa assembléia - como um manjar salutar que, nesta noite sagrada, satisfaça o nosso gosto espiritual. Estamos sofrendo, como sabeis, de penúria de alimentos. Assim, improviso a refeição; se não é suntuosa nem digna daquilo que no-Ia inspira, possa ao menos acalmar-nos a fome. Sim, não é Maria que precisa de elogios, nós é que precisamos da sua glória. Um ser glorificado, que glória pode receber ainda? A fonte da luz, como será iluminada ainda? É pois para nós mesmos que fazemos a coroa. "Vivo eu, diz o Senhor, e glorificarei os que me glorificam" . (2 Sm 2, 30)
Mas que existe de mais suave do que a Mãe de meu Deus? Ela cativou o meu espírito, ela reina sobre a minha palavra, dia e noite a sua imagem me é presente. Mãe do Verbo, dá-me de que falar! Filha de mãe estéril, torna fecundas as almas estéreis! Eis aquela cuja a festa celebramos hoje na sua santa e divina Assunção. Acorrei, pois, e subamos a montanha mística. Ultrapassando as imagens da vida presente e da matéria, penetrando na treva divina e incompreensível, ingressando na luz de Deus, celebremos o seu infinito poder. Aquele que, da sua transcendência super-essencial e imaterial, desceu ao seio virgíneo para ser concebido e se encarnar, sem deixar o seio do Pai; aquele que através da Paixão marchou voluntariamente para a morte, conquistando pela morte a imortalidade e voltando ao Pai; como não pôde ele atrair ao Pai sua Mãe segundo a carne? como não elevaria da terra ao céu aquela que fora um verdadeiro céu sobre a terra?
Hoje a escada espiritual e viva, pela qual o Altíssimo desceu, se fez visível e conversou entre os homens (Baruc 3, 38), ei-la que sobe, pelos degraus da morte, da terra ao céu ; Hoje a mesa terrestre que, sem núpcias, trouxera o pão celeste da vida e a brasa da divindade, foi levada da terra aos céus, e para a Porta oriental, para a Porta de Deus, se ergueram as portas do céu ; Hoje, da Jerusalém terrestre, a Cidade viva de Deus foi conduzida á Jerusalém do alto; aquela que concebera como seu primogênito e unigênito o Primogênito de toda a criatura e o Unigênito do Pai, vem habitar na Igreja das primícias (Hb 12, 23); a arca do Senhor, viva e racional, é transportada ao repouso do seu Filho (Sl 132, 8). As portas do paraíso se abrem para acolher a terra portadora de Deus, onde germinou a árvore da vida eterna, redentora da desobediência de Eva e da morte infligida a Adão. É o Cristo, causa da vida universal, quem recebe a gruta escondida, a montanha não trabalhada, donde se destacou, sem intervenção humana, a pedra que enche a terra
Aquela que foi o leito nupcial onde se deu a divina encarnação do Verbo, veio repousar num túmulo glorioso, como em tálamo nupcial, para de lá se elevar até á câmara das núpcias celestes, onde reina em plena luz com o seu Filho e seu Deus, deixando-nos também como lugar de núpcias o seu túmulo sobre a terra. Lugar de núpcias, esse túmulo? Sim, e o mais esplendoroso de todos, a refulgir não por revérberos de ouro, de prata ou de gemas, porém pela divina luz, irradiação de Espírito Santo. Proporciona, não uma união conjugal aos esposos da terra, mas a vida santa ás almas que se prendem pelos laços do Espírito, proporciona uma condição junto de Deus, melhor e mais suave que outra qualquer
Seu túmulo é mais gracioso do que o Éden: neste, sem querermos repetir tudo o que lá se passou, houve a sedução do inimigo, a sua mentira apresentada como conselho amigo, a fraqueza de Eva, a sua credulidade, o engodo - doce e amargo - ao qual o seu espírito se deixou prender e pelo qual em seguida aliciou o marido; a desobediência, a expulsão, a morte, mas - para não trazermos com tais lembranças assunto de tristeza á nossa festa - houve o túmulo que elevou ao céu o corpo de um mortal, ao contrário daquele primeiro jardim, que derrubou do céu o nosso primeiro pai. Pois não foi ali que o homem, feito à imagem divina, ouviu a sentença: "tu és terra e em terra te hás de tornar"? (Gn 3, 19)
O túmulo de Maria, mais precioso que o antigo tabernáculo, encerrou o candelabro espiritual e vivo, brilhante da divina luz, a mesa portadora da vida, que recebeu, não os pães da proposição, mas o pão celeste, não o fogo material mas o fogo imaterial da divindade. Esse túmulo é mais feliz que a arca mosaica, pois teve por partilha a verdade, já não as sombras e as figuras; acolheu a urna áurea do maná celeste, a mesa viva do Verbo encarnado por obra do Espírito Santo, dedo omnipotente de Deus, Verbo subsistente; acolheu o altar dos perfumes, a brasa divina que aromatizou toda a Criação
Fujam portanto os demônios, gemam os míseros nestorianos - como outrora os egípcios - com o seu chefe, o novo faraó, o cruel flagelo, o tirano, pois foram engolidos pelo abismo da blasfêmia. Nós, porém, salvos, que atravessamos a pé enxuto o mar da impiedade, cantemos á Mãe de Deus o canto do Êxodo. Miriam, que é a Igreja, tome nas mãos o tamborim e entoe o hino de festa; saiam as jovens do Israel espiritual com tamborins e coros (Ex 15, 20), exultando de alegria! Que os reis da terra, os juízes e os príncipes, os jovens e as virgens, os velhos e as crianças, celebrem a Mãe de Deus! Que reuniões e discursos de toda espécie, raças e povos na diversidade das suas línguas, componham um cântico novo! Que o ar ressoe de flautas e trombetas espirituais, inaugurando com brilho de fogos o dia da salvação! Alegrai-vos, ó céus, e vós, nuvens, fazei chover a alegria! Saltai, novilhos do rebanho eleito, apóstolos divinos que, como montanhas altas e sublimes, aspirais ás mais altas contemplações; e vós, também, ó cordeiros de Deus, povo santo, filhos da Igreja, que pelo desejo vos alçais como colinas até as altas montanhas!
Mas então? Morreu a fonte da vida, a Mãe do meu Senhor? Sim, era preciso que o ser formado da terra à terra voltasse, para dali subir ao céu, recebendo o dom da vida perfeita e pura a partir da terra, após ter-lhe entregue o seu corpo. Era preciso que, como o ouro no crisol, a carne rejeitasse o peso da mortalidade e se tornasse, pela morte, incorruptível, pura, e assim ressuscitasse do túmulo. Começa hoje para Maria uma segunda existência, recebida daquele que a fez nascer para a primeira, como também ela mesma dera uma segunda existência - a vida corpórea - aquele, cuja primeira existência, a eterna, não teve começo no tempo, embora principiada no Pai como na sua divina causa
Alegra-te, Sião, montanha divina e santa, onde habitou a outra montanha divina, a montanha vivente, a nova Betel, ungida na pedra, a natureza humana ungida pela divindade. De ti, como de um jardim de oliveiras, e Filho se elevou ás celestes alturas. Que uma nuvem se componha, universal e cósmica, e que as asas dos ventos tragam os apóstolos dos confins da terra até Sião! [1] Quem são aqueles que, como nuvens e águias, voam para o corpo - fonte de toda a ressurreição, a fim de cultuar a Mãe de Deus? Quem é a que sobe, na flor da sua alvura, toda bela, brilhante como o sol? Que cantem as cítaras do Espírito, isto é, as línguas dos apóstolos! Que ressoem os címbalos, isto é, os arautos eminentes da palavra de Deus! Que esse vaso de eleição, Hieroteu [2], santificado pelo Espírito Santo e pela união divina capacitado a sofrer as realidades divinas, seja arrebatado do corpo, e em transportes de fervor entoe os seus hinos! Que todas as nações aplaudam e celebrem a Mãe de Deus! Que os anjos prestem culto ao corpo mortal!
Filhas de Jerusalém, feitas cortejo da Rainha, e virgens suas companheiras, ide com ela até ao Esposo, levai-a à direita do Senhor! Desce, ó Soberano, vem pagar á tua Mãe a dívida que ela merece por te haver nutrido! Abre as tuas mãos divinas e acolhe a alma da tua mãe, tu que sobre a cruz entregaste o espírito ás mãos do Pai! Dirige-lhe um suave apelo: vem, ó formosa, ó bem-amada, mais resplandecente pela virgindade do que o sol, tu me partilhaste teus bens, vem agora gozar junto de mim o que te pertence! Aproxima-te, ó Mãe, do teu Filho, aproxima-te e participa do poder régio daquele que, nascido de ti, contigo viveu na pobreza! Ascende, ó Soberana, ascende! Já não vale a ordem dada a Moisés: "Sobe e morre..." (Dn 31, 48) Morre, sim, mas eleva-te pela própria morte!
Entrega a tua alma ás mãos do teu Filho e devolve á terra o que é da terra, pois mesmo isso será carregado por ti. Erguei os vossos olhos, Povo de Deus, alçai o vosso olhar! Eis em Sião a arca do Senhor Deus dos exércitos, á qual vieram pessoalmente prestar assistência os apóstolos, tributando o seu derradeiro culto ao corpo que foi princípio de vida e receptáculo de Deus. Imaterialmente e invisivelmente os anjos o cercam com respeito, como servidores da Mãe do seu Senhor. O próprio Senhor lá está, onipresente, ele que tudo enche e abraça, que na verdade não está em lugar algum porque nele tudo está como na causa que tudo criou e tudo encerra
Eis a Virgem, filha de Adão e Mãe de Deus: por causa de Adão entrega o seu corpo à terra, mas por causa do seu Filho eleva a alma aos tabernáculos celestes! Santificada seja a Cidade santa, que acolhe mais essa bênção eterna! Que os anjos precedam a passagem da divina morada e preparem o seu túmulo, que o fulgor do Espírito a decore! Preparai aromas para embalsamar o corpo imaculado e repleto de delicioso perfume! Desça uma onda pura a fim de haurir a bênção da fonte imaculada da bênção! Alegre-se a terra de receber o corpo e exulte o espaço pela ascensão do espírito! Soprem as brisas, suaves como o orvalho e cheias de graça! Que toda a criação celebre a subida da Mãe de Deus: os grupos de jovens na sua alegria, a boca dos oradores nos seus panegíricos, o coração dos sábios nas suas dissertações sobre essa maravilha, os velhos de veneráveis cãs nas suas contemplações. Que todas as criaturas se associem nessa homenagem, que ainda assim não seria suficiente. Todos, pois, deixemos em espírito este mundo com aquela que dele parte. Sim, todos, pelo fervor do coração, desçamos com a que desce á sepultura e ali nos coloquemos. Cantemos hinos sacros e nossas melodias se inspirem nas palavras: "Avé, cheia de graça, o Senhor é contigo!" Permanece na alegria, tu que foste predestinada a ser Mãe de Deus. Permanece na alegria, tu que foste eleita antes dos séculos por um desígnio de Deus, germe divino da terra, habitação do fogo celeste, obra-prima do Espírito Santo, fonte de água viva, paraíso da árvore da vida, ramo vivo que portas o divino fruto, donde fluem o néctar e a ambrosia, rio de aromas do Espírito, terra produtora da divina espiga, rosa resplandecente da virgindade, donde emana o perfume da graça, lírio da veste real, ovelha que geras o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, instrumento de nossa salvação, superior às potências angélicas, serva e Mãe!
Vinde, enfileiremo-nos em torno do túmulo imaculado para dali sorvermos a divina graça! Vinde, abracemos em espírito o corpo virginal. Entremos no sepulcro e morramos nele, rejeitando as paixões da carne, vivendo uma vida sem concupiscência e sem mácula. Escutemos os hinos divinos, cantados imaterialmente pelos anjos. Entremos para adorar, aprendamos a conhecer o mistério inaudito: como esse corpo foi elevado ás alturas, arrebatado ao céu, como a Virgem foi posta junto do seu Filho acima dos coros angélicos, de sorte que nada se interpusesse entre a Mãe e Filho
Tal é, depois de outros dois, o terceiro discurso que compus acerca da tua partida, ó Mãe de Deus, em honra e amor da Trindade, cuja cooperadora foste, por benevolência do Pai e por virtude do Espírito, quando recebeste o Verbo sem princípio, a Sabedoria onipotente, a Força de Deus. Aceita, pois, a minha boa vontade, maior do que a minha capacidade, e dá-me a salvação, a libertação das paixões da alma, o alívio das doenças dos corpos, a salvação das dificuldades, a vida de paz, a luz do Espírito. Inflama o nosso amor pelo teu Filho, regula a nossa conduta sobre o que lhe apraz, a fim de que, na posse da bem-aventurança do alto, e vendo-te refulgir com a glória do teu Filho, façamos ressoar hinos sagrados, na eterna alegria, na assembléia dos que celebram, em festa digna do Espírito, aquele que por ti opera a nossa salvação, o Cristo Filho de Deus e nosso Deus, a quem pertence a glória e o poder, com o Pai sem princípio e o Espírito Santo e vivificador, agora e sempre pelos séculos. Amém
São João Damasceno - FONTE : Gomes, Folch. "Antologia dos Santos Padres". Ed. Paulinas, 1979
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