Blog Alma Missionária

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terça-feira, 28 de maio de 2013

A Inquisição em seu mundo

Fonte: Lista Exsurge Domini
Autor: João Bernadino Gonzada
Transmissão: Padre Eduardo
Este artigo é a síntese do estudo do livro "A INQUISIÇÃO EM SEU MUNDO" DE JOÃO BERNADINO GONZADA, publicado pela Editora Saraiva. O autor é um leigo, titular de Direito Penal, nas Faculdades de Direito da USP e PUC de São Paulo. Este artigo foi tirada da Revista Pergunte & Responderemos de Abril de 1994, n. 383 das páginas 158 a 167.
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A INQUISICÃO EM SEU MUNDO

por João Bernardino Gonzaga

Em síntese: O Prof. João Bernardino Gonzaga expõe aos leitores traços tipicos do mundo medieval e pós-medieval, em que funcionou a Inquisição. Evidencia, mediante pesquisa do Direito Penal da Idade Média, que os procedimentos da Inquisição eram os do Direito Civil da época, de modo que não causavam estranheza nem aos sábios nem ao povo simples. Apesar disso, nota-se que a Inquisição, não raro, abrandou a jurisprudência do seu tempo; soube abrir exceções em favor dos condenados e os seus juizes tentaram comportar-se com honestidade e retidão de Intenções, certos de que os bens espirituais são mais valiosos do que os materiais e, por isso, merecem todo o zelo da parte de quem os professa.

As páginas que se seguem, reproduzem trechos do livro do Prof. J. B. Gonzaga, livro de leitura altamente proveitosa, pois põe em relevo vários traços da vida medieval e pós-medieval que são desconhecidos do homem contemporâneo e habilitam a compreender melhor o fenômeno "Inqui­sição'

* * *
Foi publicada em sete edições sucessivas (ou dezenas de milhares de exemplares) no ano de 1993 a obra do Prof. Dr. João Bernardino Gonza­ga intitulada "A Inquisição em seu Mundo". Trata-se de um estudo que não se contenta com o relato de fatos, mas procura compreendê-los, se­guindo uma sábia lei de historiografia: coloquem-se os fatos pretéritos no seu respectivo contexto Histórico, a fim que o estudioso os possa entender a partir dos parâmetros dos respectivos protagonistas, em vez de os julgar a partir de premissas estranhas aos antigos. O Prof. João Bernardino apli­cou essa norma ao fenômeno "Inquisição", executando assim uma tarefa, de certo modo, inédita e altamente benemérita, pois esclarece enormemen­te uma fase da história mal entendida por muitos observadores. Isto não quer dizer que, o autor é inocente, por completo, os homens que promove­ram a Inquisição, mas significa que o procedimento que causa estranheza aos observadores de hoje, não a causava aos respectivos atores.

É de notar que a Inquisição se desenvolveu em três fases sucessivas:
1) A Inquisição Medieval, do século XII ao século XV, voltada con­tra os cátaros (que saqueavam fazendas e aldeias por motivos filosófico-­religiosos) e, depois, contra outros tipos de erros religiosos.
2) A Inquisição Romana, dirigida contra as idéias paganizantes e re­formadoras dos séculos XV/XVII.
3) A Inquisição Espanhola, do século XV ao século XIX, visava aos judeus e muçulmanos da península ibérica, sob a direção prepotente dos monarcas espanhóis, que, servindo-se de um instrumento religioso, que­riam unificar a população de Espanha e Portugal.
Percorramos as principais páginas do livro que põem em foco a men­talidade e a vida de pessoas que viveram o fenômeno "Inquisição" ou vi­veram na época da. Inquisição. Visto que nos interessamos pelo quadro genial ou a moldura em que se desenvolveram os fatos, os tópicos seguintes se referirão à vida civil e à jurisprudência civil dos séculos passados e não diretamente à Inquisição.

1. UNIÃO DE IGREJA E ESTADO

Logo na Apresentação do livro, à p. 15, lê-se:

“Inquisição nunca foi um tribunal meramente eclesiástico; sempre teve a participação (e participação de vulto crescente) do poder régio, pois os assuntos religiosos eram, na Antiguidade e na Idade Média, assuntos de interesse do Estado; a repressão das heresias (especialmente dos cátaros, que pilhavam e saqueavam as fazendas) era praticada também pelo braço secular, que muitas vezes abusou da sua autoridade. Quanto mais o tempo passava, mais o poder régio se ingeria no tribunal da Inquisição, servindo-­se da religião para fins políticos. Dois casos significativos a tal propósito foram: 1) em 1312 a condenação dos Templários, contra os quais o rei Fi­lipe IV o Belo da França (1285-1314) moveu a Inquisição, desejoso de possuir os bens da Ordem dos Templários, quando condenada e abolida; 2) em 1431 a condenação de Joana d'Arc, a jovem guerreira que incomo­dava a Coroa da Inglaterra pelo seu zelo cristão e patriótico.

Aliás, quanto mais a história avançava, tanto mais absolutistas se tornavam os reis do Ocidente europeu, de tal modo que não podiam tolerar outra instância judiciária autônoma (a eclesiástica) ao lado da instância judiciária civil; esta deveria mais e mais valer-se dos tribunais eclesiásticos para implantar os interesses dos monarcas. A prepotência começou com Filipe IV o Belo da França e atingiu o seu auge na Espanha e em Portugal a partir do século XVI; o desejo de unificar a população da península ibé­rica, composta de cristãos, judeus e muçulmanos, levou os reis daqueles dois países a pedir e obter do Papa a instalação da Inquisição em seus terri­tórios; os soberanos acionavam a Inquisição segundo os seus propósitos, mediante homens por eles nomeados, provocando sérios conflitos com a Santa Sé, que mais de uma vez se recusou a reconhecer o procedimento da Inquisição na península ibérica; aliás, no final da vigência desta Institui­ção, já não se dizia Inquisição Eclesiástica, mas, sim Inquisição Régia."


2. A JUSTIÇA CRIMINAL COMUM

O Capítulo 1 do livro põe em foco os princípios que inspiraram a pesquisa do Prof. João Bernardino:

"As censuras apresentadas contra a Inquisição giram, invariável e in­cansavelmente, em torno das idéias de intolerância, prepotência, cruelda­de; mas, ao assim descrevê-la, os críticos abstraem, ou referem muito de leve, o ambiente em que ela viveu. Forçam por tratá-la quase como um acontecimento isolado e, medida pelos padrões da atualidade, se torna in­compreensível e repulsiva para o espectador de hoje.

Sucede porém que esse fenômeno foi produto da sua época, inserido num clima religioso e em certas condições de vida, submetido à força dos costumes e de toda uma formação cultural e mental, fatores que forçosa­mente tiveram de moldar o seu comportamento. Por isso entendemos in­dispensável suprir grave lacuna: antes de examinar a Inquisição, é preciso conhecer de perto o mundo que a envolveu, tão diferente do nosso. Sobre­tudo, não nos duvidemos de que o Santo Ofício equivaleu a uma, Justiça Criminal, de sorte que não é possível entendermos o seu procedimento sem preliminarmente saber como atuava a Justiça Criminal comum, ou lai­ca, que lhe foi contemporânea e que lhe serviu de modelo. Esta era uma Justiça assinalada por profundo atraso, com métodos toscos e violentos, mas por todos encarada com naturalidade, aprovada e defendida pelos mais sábios juristas de então" (p. 21).

3. REGIME DE CRISTANDADE

É importante notar a diferença entre o mundo de hoje e a medieval na tocante à cosmovisão ou à filosofia de vida: ao passo que em nossos dias se admite a pluralismo, segunda a qual vivem lado a lado pacifica­mente cristãos, judeus, muçulmanos, ocultistas, ateus. . . , na Idade Média tal pluralismo era inconcebível; quem não fosse cristão fiel, era suspeito de estar possesso do demônio e infenso à sociedade daí a motivação pró­pria que levava os medievais a inquirir as dissidentes da fé cristã: - São es­ta as palavras da Prof. João Bernardino:

"Na Europa ocidental após a queda do Império Romano, a única ins­tituição poderosa e universal era a Igreja. Ser membro dessa associação era teoricamente voluntário e praticamente obrigatório. Ser desligado de sua comunhão era castigo tamanho que, até o século XVI, os próprios reis te­miam diante da ameaça de excomunhão. Da menor das aldeias, com sua igreja paroquial, à maior das cidades, com sua catedral, suas numerosas igrejas, seus mosteiros e santuários, a Igreja estava visivelmente presente em todas as comunidades: suas torres eram o primeiro objeto que a viajante divisava no horizonte e sua cruz era a último símbolo levantado diante dos olhos do agonizante.

"Numa cultura assinalada por espantosas diversidades de dialeto, di­reito, culinária, pesos e medidas, cunhagem, a Igreja oferecia uma morada comum, na verdade um abrigo universal: o mesmo credo, os mesmos ofí­cios, as mesmas missas, realizadas com os mesmos gestos, na mesma or­dem; para o mesmo fim, de um outro extremo da Europa. Nunca a rigo­rosa uniformidade romana serviu melhor à humanidade que durante esse período. Nos ofícios mais importantes da vida, até a menor das aldeias achava-se no plano de uma metrópole. A Igreja Universal dava a todas as comunidades, pequenas e grandes, um propósito comum" (LewisMum­fard, op. cit., págs. 290-1).

Torna-se difícil, se não impossível, para o homem de hoje sentir em seu coração o que se passava naqueles tempos. . . O mundo terreno possui demasiados atrativos, as pessoas vivem ocupadas demais, a preocupação econômica tende a tudo dominar. A intensa propaganda consumista leva à ânsia de prazeres e de bens materiais, antepondo-se à imagem da sobrena­tural.

Antes, ao inverso, a simplicidade da vida, a tenaz pregação catequis­ta feita pela Igreja, as idéias de Deus, da morte, de céu e de inferno sempre presentes, tudo isso envolvia o indivíduo numa atmosfera de forte religio­sidade. A Igreja se revelava por toda parte, com sua pompa, com seus sole­nes ritos litúrgicos, com procissões, festas, penitências, peregrinações. Jun­to ao povo estavam bispos, padres, freiras, monges, frades, pequenos curas de aldeia, ocupando-se das escolas, das universidades, dos hospitais, dos asilos. Os estabelecimentos religiosos em geral constituíam o repositório da cultura e das artes, pintura, escultura, arquitetura, música. A inteira existência dos homens era ritmada pelo calendário cristão, cada dia com o seu santo; pelos ritos religiosos; pelos sinos que repicavam, desde o ama­nhecer até a hora da Ave Maria" (pp. 59s).

"Era incomum, quase inconcebível, na época, uma sociedade religio­samente pluralista, cada grupo com sua crença, seus templos e seus cultos, todos convivendo harmonicamente. Em clima de liberdade e mútuo respei­to. Isso só se tornou realmente viável há muito pouco tempo, na História da humanidade" (p. 61). .

4. DEFESA DA SOCIEDADE

Os tribunais costumavam julgar com rigor as pessoas acusadas; os pro­cedimentos aplicados aos réus ou aos pretensos réus eram duros e severos. Para explicá-lo, nota o prof. J. B. Gonzaga:

"A proliferação de crimes constituía verdadeira calamidade. Não ha­via nenhuma segurança nos campos, nas estradas, nas cidades. Tudo se achava infestado por legiões de assaltantes, muitas vezes organizados em, bandos de assassinos, de ladrões, trapaceiros, prostitutas, mendigos, etc. As crises periódicas por que passava a agricultura, despejavam nas cidades multidões de desempregados e de miseráveis. As freqüentes guerras produ­ziam populações errantes; a soldadesca de mercenários, nos intervalos entre os combates, não tendo o que fazer, se entregava a assaltos e a pilhagens.

Escusa enfim desdobrar todo o triste panorama, que facilmente ima­ginamos, daqueles tempos confusos. Concomitantemente, inexistia qualquer política social eficaz. Coube então à Justiça Penal a tarefa de suprir essa falha, contendo os insatisfeitos e ordenando a sociedade; o que ela fez através do terror.

Dispõe o Estado hoje de certos recursos que o ajudam no trabalho de proteção social contra a delinqüência.

A moderna Criminologia desvenda as forças criminógenas, e indica os meios de enfrentá-las. Integram-na a Sociologia, a Antropologia; a Psicologia e Psiquiatria criminais. . . Todos os paises possuem, uma ­Polícia formada por profissionais especializados no combate à criminalidade. As cida­des são bem organizadas, as ruas possuem nomes, as casas têm números.

Conseguintemente, espera-se hoje que a possibilidade mais fácil de serem descobertos e punidos contenha muitos delinqüentes potenciais, de sorte que as penas podem ser mais brandas, isto é, podem ser adequadas, com justiça, à gravidade de cada infração.

Sucede, porém, que todas as mencionadas ciências e técnicas que au­xiliam no combate à criminalidade são recentíssimas, começaram a surgir há pouco mais de um século. Antes, se não houvesse prisão em flagrante, as autoridades ficavam diante de imensa dificuldade para descobrir e pren­der os autores dos crimes" (pp. 48s)'

5. CONDIÇÕES DE VIDA DAS POPULAÇÕES.

Os métodos judiciais da Idade Média eram rudes. "Isto só pode ter existido e ter sido absorvido pela sociedade, porque as pessoas, no seu dia-a-dia, levavam vida extremamente dura" (p. 51). Continua o Prof. Gonzaga:

"Estudando a típica cidade européia ao término da era feudal, obser­va Max Savelle que, para sua defesa, ela era sempre rodeada de muralhas. 'Como as muralhas fixavam limites ao crescimento exterior da cidade, os edifícios no seu interior se amontoavam uns sobre os outros. Por ser difí­cil o espaço, as ruas eram estreitas. Muitas vezes a lei determinava que uma rua devia ser bastante larga para permitir que uma pessoa andasse a cavalo no seu centro, levando uma lança atravessada na extensão da largura. Isso estava longe de ser uma medida generosa, mas os construtores se empolei­ravam mesmo sobre essa estreita dimensão, fazendo com que os andares superiores de suas casas se projetassem sobre a rua. E, como as casas nor­malmente se erguiam à altura de quatro ou cinco andares, isto redundava em que o sol escassamente chegava a alcançar o leito do logradouro' (Max Savelle, História da Civilização Mundial, vol. :2, p. 207).

Com o progressivo desenvolvimento urbano, daí por diante as condi­ções se foram tornando crescentemente piores. Ruas sombrias e imundas, com os esgotos correndo a céu aberto. Nelas, os moradores das casas joga­vam seus dejetos, o lixo, as sobras da cozinha, formando-se uma massa de podridão, revolvida pelos cães, gatos, porcos e ratos que infestavam a ci­dade. O mau cheiro se espalhava por toda parte; as enfermidades endêmi­cas e epidêmicas tinham livre curso, varrendo famílias inteiras" (p. 51).


6. A MEDICINA

A dureza de vida, derivada de precárias condições arquitetônicas, era aumentada pelo caráter rudimentar da Medicina da época. Eis o que obser­va o Prof. J. B. Gonzaga:

"Ficamos perplexos ao imaginar hoje a cena de um magistrado da­quelas épocas: homem supostamente culto e sensível, ordenando e presen­ciando a tortura do acusado que se acha à sua mercê. Sucede entretanto que esse juiz, por hipótese, na véspera daquele dia vira sua filha, menina ainda e inocente, ter uma perna esmagada e por isso amputada, sem anes­tesia, pelo cirurgião-barbeiro. Ou, mais prosaicamente, ele próprio tivera de sofrer, a frio, a extração de um dente molar infeccionado. Por que, en­tão, se iria compadecer diante de um criminoso que presumivelmente me­recia a tortura?

A arte de curar cabia aos médicos, chamados "físicos", que haviam para isso freqüentado cursos regulares. Abaixo deles situavam-se os "cirur­giões-barbeiros", homens que, com a prática, haviam adquirido aptidão pa­ra realizar alguns atos cirúrgicos: amputação de membros, ressecção, desar­ticulação, redução de fraturas, lancetamento de abscessos e tumores, etc., inclusive, às vezes, sutura de órgãos internos rompidos. As guerras, geran­do legiões de estropiados, foram grandes fornecedoras de trabalho para esses profissionais.

A anestesia e as regras de assepsia somente viram a difundir-se na se­gunda metade do século XIX. Antes, operava-se "a frio", sendo muito even­tuais e precários os recursos anestésicos. O paciente era amarrado e conti­do pelos auxiliares do cirurgião e este devia possuir rija têmpera e coração duro para intervir ao som de lancinantes gritos de dor. Nenhum cuidado de higiene era tomado: o operador atuava vestido com suas roupas normais e sequer lavava as mão os instrumentos utilizados. Findo o ato, a ferida era coberta com óleo fervente, para deter a hemorragia e evitar a infecção; a qual, todavia, sobrevinha quase invariavelmente. Em conseqüência, a porcentagem de óbitos era muito elevada" (pp. 55s).

7. A TORTURA

A tortura era um processo aplicado pela Justiça civil medieval, de acordo com o costume de legislações muito antigas:

"Parece que, em maior ou menor grau, essa violência foi utilizada por todos os povos da Antiguidade. O texto mais velho que dela nos dá notí­cia acha-se em fragmento egípcio relativo a um caso de profanadores de túmulos, no qual aparece consignado que 'se procedeu às correspondentes averiguações, enquanto os suspeitos eram golpeados com bastões nos pés e nas mãos'.

Dir-se-á que a tortura talvez constitua eterna fatalidade do gênero hu­mano e que prossegue hoje existindo. Sim, é exato, basta lembrar o que ocorreu nos regimes totalitários da Alemanha nazista, da Itália fascista, da Rússia comunista. Os franceses supliciaram prisioneiros na guerra de liber­tação da Argélia. Os agentes policiais, mesmo em países civilizados, con­tinuam utilizando tal recurso, e célebre ficou, nesse sentido, o 'Third de­gree' da polícia norte-americana.

Sucede todavia que hoje a tortura só se pratica clandestinamente, com repulsa do Direito e da opinião pública. As leis modernas a qualificam como crime, ameaçando com severíssimas penas seus autores. Mesmo quando adotada por governos autoritários, ela se faz oficiosamente, às ocultas, e tem a sua existência negada.

Nos séculos passados, ao contrário, os suplícios foram pacificamente aceitos, como recurso normal da Justiça, e regulamentados pelo legislador. Na Espanha, em meados do século XIII, Afonso X, o Sábio, tranqüilizava seus súditos explicando no Código das Sete Partidas que a tortura se justificava porque fora adotada pelos sábios antigos (ou seja, pelos juristas ro­manos). Parto VII, tít. 30, de Los Tormentos: 'Porende tenieron por bien los sabios antiguos que fizieron tormentar aios omes, por que pudiessen saber Ia verdad ende dellos'.

Na Alemanha, na Itália, na Espanha, em Portugal, por toda parte tor­turavam-se normalmente os acusados e, às vezes, também as testemunhas não merecedoras de fé. Em França, as Ordenações de 1254 e todas as sub­seqüentes adotaram oficialmente a questão, ou interrogatório com tor­mentos" (p. 32).

Acrescente-se o seguinte traço muito importante:

"Os historiadores estão de inteiro acordo sobre o fato de que o povo em geral, de todas as classes sociais, aceitava pacificamente os rigores do sistema repressivo, encarando-os com absoluta naturalidade, como algo normal e necessário.

Os grandes juristas da época, homens respeitados pelo saber e prudên­cia, estruturaram e defenderam a inquisição, com suas denúncias anônimas, seus processos secretos, o sistema das provas legais, a tortura. Tudo isso foi aprovado pelos Mestres Bartolo e Baldo, no século XIV; por Angelus de Aretio, no século XV; no século XVI, por Hippolytus de Marsiliis, Ju­lius Clarus, Farinacius, Menochius, na Itália, Carpzov e Schwctrzehberg na Alemanha" (p. 47).

8. A INQUISICÃO NO SEU CONTEXTO

O quadro geral até aqui descrito elucida, de certo modo, a mentali­dade e os costumes dos homens que viveram a Inquisição, seja como jui­zes, seja como réus. A Inquisição teve seu surto em tal ambiente. Não é nosso propósito, neste artigo, descrever as origens e os procedimentos específicos da Inquisição, pois isto foi feito em PR 220/1978, pp. 152­155; 240/1979, p. 529 e no nosso Curso de História da Igreja por Corres­pondência, Módulos 32 e 33.

Importa, porém, destacar as ponderações do Prof. João Bernardino:

"A Inquisição equiparou-se a uma Justiça Penal, de sorte que natural­mente adotou os modelos que vigiam nos tribunais laicos. Eram métodos processuais que mereciam total beneplácito dos mais renomados juristas e que estavam de acordo com os costumes. Os homens que compunham a Igreja eram homens daquele tempo e não podiam deixar de submeter-se às suas influências.

O procedimento dos tribunais inquisitoriais é, para a mentalidade atual, inaceitável; mas, apesar disso, representou um abrandamento peran­te o que se passava nos seus congêneres do Estado. Não podemos julgar o que eles fizeram sem os focalizar como órgãos condizentes com certo teor de vida, investidos de uma missão sobrenatural e cristã a cumprir, que se ocupavam de crimes, a seus olhos, gravíssimos, e que terão agido, em regra, com zelo, equilíbrio e honestidade. Mister se faz acautelar-nos con­tra aqueles que, no afã de denegrir a Igreja Católica, procuram criar escân­dalos, só descrevem as exceções e não as regras, os abusos e não os usos. A se crer nesses detratores da Inquisição, todo o mal estaria com os seus juí­zes; todo o bem com os seus réus" (pp. 119s).

Mais adiante ainda escreve o autor:

"Um aspecto a destacar é que, mesmo quando as regras penais da Igreja tendiam para o rigor, este, na prática, costumava ser com freqüência mitigado.

Mostra-o muito bem, comprovadamente, Jean Giraud. "As penas da Inquisição eram freqüentemente atenuadas ou até apagadas. Não se deve crer, por exemplo, que todo herege que figura nos Registros como con­denado ao 'muro perpétuo' haja permanecido na prisão o resto dos seus dias. Mesmo os mais severos Inquisidores, como Bernardo de Caux, segui­ram tal orientação. Em 1246, esse juiz condenou à prisão perpétua um he­rege relapso, mas na própria sentença acrescentou que, sendo o pai do cul­pado bom católico, velho e doente, seu filho podia permanecer junto a ele, enquanto vivo fosse, para lhe prestar cuidados. Quando os detentos caíam doentes, obtinham permissão para se ir tratar fora da prisão ou junto às suas famílias. Freqüentemente também os inquisidores concediam atenua­ções e comutações de pena; por exemplo, a prisão era substituída por uma multa, ou uma peregrinação, etc. Essa pena flexível decorria forçosamente do caráter medicinal que lhe atribuía a Igreja" (p. 136).

CONCLUSÃO

O livro do Prof. J. B. Gonzaga é sério e imparcial. Descreve a rudez de vida dos medievais e pós-medievais, que esclarece o fenômeno "Inqui­sição".

Não poderíamos, porém, encerrar esta resenha sem registrar que, ape­sar de tudo, a vida dos medievais tinha sua alegria, seus cantos, suas dan­ças, suas festas com espetáculos; sua poesia. "Por toda parte floresceram as partes, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música, a literatura, o. teatro" (p. 56).

A obra do Prof. João Bernardino Gonzaga merece a gratidão dos estudiosos, interessados em ultrapassar as noções e julgamentos superfi­ciais.



Paz e Bem!
Pe. Eduardo

A história da Inquisição

Fonte: Lista Católica
Autor: Pe. W. Devivier, S.J.
Transmissão: Roberto Cavalcanti
Não deve o católico envergonhar-se de sua história, que é bela, que é grandiosa. Não deve ceder em face dos ataques dos que, ignorando de todo a nossa história, repetem e propagam "lendas negras", criadas com o fim declarado de subverter nossa Fé e nosso amor à Santa Madre Igreja.

Não deve deixar-se confundir ao ver, como ocorreu recentemente -- para o nosso estupor e tristeza -- os mais altos membros do clero, o próprio Papa, prostarem-se em pedidos de perdão pelos "erros da inquisição", dando ao mundo apóstata mais essa satisfação e dando crédito a tantas calúnias e imposturas que circulam contra a Igreja.

Vários santos foram grandes inquisidores: S. João Capistrano, S. Domingos e S. Pio V, para citarmos apenas alguns. É a inquisição intrinsecamente má? O que é verdadeiro e o que é falso em tudo o que se tem dito a seu respeito? O texto abaixo, extraído do manual de Apologética do Pe. W. Devivier, recomendado nada mais nada menos por S. Pio X, responde a todas estas perguntas.



A HISTÓRIA DA INQUISIÇÃO



RECOMENDAÇÃO DE SS. S. PIO X

quando Patriarca de Veneza
ao editor da tradução italiana desta obra


Muito me honra o seu pedido de eu juntar minha humilde voz a dos eminentes Prelados, que louvaram o Curso d’Apologética Cristã do P. W. Devivier.

Tal é, na verdade, o mérito desta obra que, onde quer que for conhecida será procurada pelos sacerdotes para relembrar as verdades aprendidas no seu curso dogmático. Eles a espalharão também nas famílias como resumo dessa teologia, que os leigos só podem estudar dum modo incompleto, mas que não podem ignorar para darem razão da sua fé a si e aos outros, defendendo-a contra as acusações suscitadas.

Aprovo, pois, o juízo favorável dado por tantos homens distintos e acho até o elogio do tradutor inferior à mesma obra. Também quisera vê-la nas mãos dos jovens e homens de toda a condição, e mesmo nas mãos das senhoras, pois elas às vezes deixam de, nesta época de negligência em matéria de instrução religiosa, aprofundar as coisas da fé, e vivem num estado de dúvida, produzido pelas objeções, que não sabem resolver.

Regozijando-me do bem que fazeis, preparando esta 2ª edição italiana, faço votos para que esta obra seja conhecida e dada como lembrança da 1ª comunhão, como prêmio nas casas de educação, como de leitura nas famílias cristãs. Tenho para mim, que todos os que a leram, dirão, ao Senhor, confirmados na verdade religiosa: “Vossos testemunhos são infinitamente dignos de fé”. (Ps. 92). Eles reconhecerão também quanta perfídia há em outros livros, por demais espalhados, inimigos da religião, e reduzirão ao silêncio, com nobre franqueza, os que em conversas particulares ousam caluniar a Igreja em algum ponto...

Mantua, 20 de abril de 1894.

***

ALGUMAS DAS ACUSAÇÕES QUE SE FAZEM CONTRA A IGREJA

Nunca a Igreja, santa em seu Fundador e sempre pura na sua doutrina e na sua moral, deixou de encaminhar os seus filhos para a prática das mais belas e até das mais heróicas virtudes. E, por isso, não obstante as fraquezas da humanidade e a grande força das paixões, jamais deixou de haver entre os católicos uma grande multidão de santos, de apóstolos, de mártires, de homens de grande e nobre caráter, incapazes de baixezas e prontos a levar a cabo obras da mais elevada perfeição e da mais sublime caridade.


Mas não deixa o cristão de ser um homem livre, e nem a graça do batismo, nem também a do sacerdócio aniquilam as propensões que o puxam para o mal. Mesmo no colégio apostólico houve quem atraiçoasse o divino Mestre. E no correr dos séculos houve sacerdotes, bispos e até Papas, que faltaram às obrigações do seu estado.

E o que se segue daí? Que é falsa a sua doutrina? Mas nunca a esta doutrina nem à Igreja docente foi jamais concedido o privilégio da impecabilidade. Que ela seja impotente para produzir os frutos de virtudes, que ela própria preconiza? Ainda nos tempos mais corruptos contou entre seus filhos santos eminentes que conseguiram reagir contra a corrupção dominante e reformar a sociedade.

Em lugar, porém, de admirarem estes prodígios de virtude, operados pela graça sobrenatural num sem número de almas, apesar da impetuosidade das paixões, dão-se os inimigos do catolicismo, com grande afã, a rebuscar, através dos séculos, os abusos e faltas, necessariamente inerentes à frágil natureza humana, para delas fazerem o grande cavalo de batalha na sua guerra contra a religião e para perpetuamente as estarem lançando em rosto à Igreja. Para esses homens não tem importância alguma a obra de regeneração social que ela efetuou: nem eles atentam na luta incessante que ela tem de sustentar contra tudo quanto se opõe à lei divina. Os crimes de alguns celerados, que receberam o batismo, são o grande arsenal para estes farejadores de escândalos. Rebatamos, pois, já que é necessário, as principais acusações, que eles obstinadamente se empenham em assacar à Igreja de Jesus Cristo.

***


A INQUISIÇÃO

Chama-se Inquisição uma instituição destinada a fazer averiguações sobre as heresias e as reprimi-las; e, assim definida, tomou no decorrer dos tempos as três formas seguintes:

A Inquisição episcopal, que existiu desde os primeiros tempos da Igreja e continua ainda existindo hoje em dia [Nota: o texto é anterior ao Concílio Vaticano II].

A Inquisição pontifical, instituída por Gregório IX, pelos anos de 1231, contra os cátaros.

A Inquisição espanhola, estabelecida em 1478 pelos reis católicos, Fernando e Isabel, e ratificada por Sixto IV, destinada a exercer a vigilância primeiramente sobre os judeus relapsos do século XV, e depois sobre os mouros do século seguinte, e mais tarde a defender os povos das doutrinas heréticas.

A Inquisição episcopal e a pontifical partem dos mesmos princípios e apresentam-se com os mesmos caracteres fundamentais, pelo que na nossa exposição as consideraremos como idênticas, sob a denominação comum de Inquisição eclesiástica.

Para a Inquisição espanhola reservamos um lugar especial, por ser uma instituição com um duplo aspecto, o civil e o eclesiástico; e por isso mesmo, de responsabilidades muito distintas.

I – Origem e natureza da Inquisição eclesiástica.

A. NOTÍCIA HISTÓRICA

Durante toda a sua existência se considerou a Igreja obrigada a combater a heresia; e foi naturalmente aos bispos, encarregados de olharem pelo tesouro da fé, que ficou confiada esta missão de vigilância e das salutares admoestações, e, sendo necessário, de usar de repressão.

Nos começos do cristianismo eram as penas espirituais as que se empregavam, e especialmente a excomunhão; e bem duras eram, como é sabido, as penitências a que os excomungados se sujeitavam para alcançarem a reconciliação com a Igreja.

Da legislação civil é que depois vieram as penalidades temporais, aplicadas contra os hereges. Apenas se firmou a paz com a Igreja, começaram logo os imperadores cristãos a impor pelos seus códigos penas severas contra as heresias, equiparadas aos crimes de lesa majestade; e mais de uma vez chegaram os juízes imperiais a punir com a pena de morte os maniqueus, os donatistas e os prescillianistas. Não eram estes castigos pedidos pelos chefes da Igreja; e a maioria dos S. Padres, entre outros Santo Ambrósio, S. João Crisóstomo e S. Martinho, mostravam-se-lhes abertamente adversos. E Santo Agostinho, que ao princípio não queria contra os hereges senão as penas espirituais, mudou depois de parecer, ao reparar nas grandes desordens praticadas pelos donatistas na África, e admitia que se usasse com eles a luta comedida, por meio de multas contra os hereges vulgares e do exílio contra os cabeças; mas protestou sempre contra a pena de morte, aplicada aos hereges. E foi este o sentir que adotaram a maioria dos Papas do Ocidente.

Também os bárbaros, depois que se converteram, consideraram a heresia como um crime social, que devia ser, como os demais, punido pela autoridade civil; e assim, já muito entrada a Idade Média, não foram poucos os casos de hereges castigados pelos juízes civis com penas temporais, e até com pena de morte, depois de condenados pelos tribunais dos bispos. E por vezes nem o povo esperava pela condenação em regra, senão que se apoderava do delinqüente e lhe dava a morte; e os bispos, que geralmente seguiam o pensar de Santo Agostinho, protestavam contra tais violências e quanto possível as impediam.

Por fins do século XII começou a heresia dos cátaros a propagar-se com uma rapidez tão assustadora, que não só punha em risco a fé dos povos, mas também a ordem social constituída, o que obrigava os chefes da Igreja a, de combinação com os príncipes cristãos, tomarem uma série de precauções contra aqueles hereges, muito mais severas. Reuniu-se em 1148 um sínodo em Verona, para o que intervieram o Papa Lúcio III e o imperador Frederico Barbaroxa; e nele se ordenou aos bispos que por si ou por outrem fizessem vistorias pelos lugares suspeitos; e as decisões de Verona foram confirmadas pelos concílios de Avinhão, de Montpellier, de Tolosa e, sobretudo, pelo concílio ecumênico de Latrão (1215). Havia em cada freguesia pessoas de confiança, encarregadas de vigiar e de denunciar ao tribunal do bispo os que eram suspeitos de heresia. E os hereges, que fossem convencidos e condenados de heresia por este tribunal, ficavam incursos em várias penas, que eram aplicadas pelos magistrados civis. Havia já por este tempo enviados especiais do Papa, encarregados de, coadjuvados pelos bispos, fazerem em determinadas regiões as devidas averiguações acerca da situação dos hereges; e entre eles distinguiu-se muito S. Domingos (1221); mas ainda a Inquisição se não apresenta sob a forma de uma instituição com organização própria; e é falso o dizer-se que S. Domingos fosse o primeiro dos inquisidores.

Não eram ainda estes meios dotados de suficiente eficácia. Muitos bispos, conjuntamente senhores temporais e chefes da Igreja, eram amigos ou aliados de famílias heréticas, sujeitas às pesquisas, e não tinham o zelo, que se requeria, ou não eram secundados pelos magistrados civis.

O Papa Gregório IX (1227 – 1241) é que, para atalhar a perversidade herética, fundou a Inquisição, com o título de Inquisitio hæreticæ pravitatis. O imperador Frederico II pouco se preocupava com os interesses da Igreja; mas como via os perigos das novas idéias anti-sociais e as desordens, com que os cátaros ameaçavam a paz dos seus estados, promulgou, a partir de 1220, uma série de constituições, que muito agravavam as penas pelo sínodo de Verona impostas aos hereges.

Era, porém, para temer que o poder civil tomasse o lugar do poder religioso em julgar pelos delitos que dependiam principalmente da alçada da Igreja, como eram os das heresias; e, para prevenir esta usurpação, tomou Gregório IX a dianteira; aprovou os estatutos imperiais e tratou de os pôr em prática nas cidades italianas. E para atalhar, sobretudo, qualquer ingerência dos magistrados civis nos processos de heresia e bem assim para acabar com a apatia dos empregados dos bispos, começou por enviar, a partir de 1231, a diversas regiões, um certo número dos seus delegados, Inquisitores hæreticæ pravitatis, os quais de certo se deviam entender com os bispos para o desempenho da sua missão, mas que no entanto recebiam diretamente do Papa a sua jurisdição e que podiam formar tribunais estranhos aos dos bispos. A sua alçada estendia-se não já, como a dos bispos, a uma diocese, mas a regiões inteiras, como a Provença, a Lombardia, etc. Os magistrados civis eram obrigados a usar da força para a execução das condenações, e podiam mesmo ser constrangidos por meio da excomunhão.

Foi então que, propriamente falando, a Inquisição começou a desempenhar o seu papel por meio dos seus tribunais, distintos dos episcopais, com jurisdição diretamente recebida do Papa e com os rigores especiais no andamento dos processos, tomados, sobretudo, das leis de Frederico II. Foi a gerencia inquisitorial comumente confiada a religiosos mendicantes, e especialmente, ainda que não unicamente, aos religiosos dominicanos. Dedicavam-se estes religiosos a defender de um modo especial a santa Sé; eram mais alheios que os leigos às influências mundanas; e por isso estavam mais no caso de desempenharem melhor estas funções. A maior parte daqueles, cujas notícias biográficas conhecemos, eram, a juízo dos próprios adversários da Inquisição, homens de ciência e de probidade; e muitos deles sofreram o martírio no desempenho deste cargo, que lhes foi imposto pela Santa Sé, e mereceram as honras da canonização ou da beatificação.

Em quatro pontos principais se diferenciam os processos inquisitoriais dos outros usados nas dioceses. Os incriminados primeiramente não dispunham de advogado, porque logo este ficaria suspeito como fautor de heresia. Em segundo lugar os desqualificados perante os tribunais dos bispos (os antigos hereges, as pessoas de maus costumes ou os condenados por diversas causas) não eram refugados como testemunhas nestes tribunais; o acusado tinha, contudo, o direito de recusar os seus inimigos pessoais. Os nomes das testemunhas ficavam, em terceiro lugar, secretos para os acusados que assim tinham de defender-se contra acusações, cuja procedência eles ignoravam; fazia-se isto por precaução contra as represálias dos acusados ou dos seus amigos. E, enfim, a tortura não foi conhecida no foro episcopal; e só se introduziu nos processos inquisitoriais no ano de 1252.

Era esse processo muito rigoroso, pois que despojava os denunciados por heresia da maior parte das garantias, que nos tribunais da Igreja se concediam aos outros culpados. É, contudo, falso que os denunciados, levados ao tribunal da Inquisição, ficassem de todo entregues ao arbítrio dos seus julgadores. Não falando das penas espirituais e corporais impostas às falsas testemunhas, devia o inquisidor aconselhar-se com homens prudentes e instruídos, que tinham conhecimentos dos nomes dos acusadores e que os podiam refugar, e que eram comumente dignitários eclesiásticos e membros do foro diocesano, tidos como boni viri. A sua influência foi aumentando com o tempo, de modo que se assemelharam depois aos que hoje chamamos jurados. Era aos acusados permitido aduzirem testemunhas que, sob juramento, abonassem a ortodoxia que se punha em dúvida. Não podia, enfim, o inquisidor dar a sentença sem primeiro ouvir o parecer do prelado diocesano; nem a tortura se podia aplicar senão citra membri diminutionem et mortis periculum; e só foi empregada em casos extremos, os quais, segundo se averiguou, foram realmente muito raros. E, demais disto, facultava-se sempre a apelação para o Papa.

Os acusados, convictos ou pelo menos gravemente suspeitos de heresia, a quem os inquisidores encontravam nas suas viagens, eram encarcerados ou ficavam sob a fiança em liberdade, até a sentença solene ou auto de fé. Não era este auto da fé, como muitos supõem, o suplício dos hereges, pois que somente consistia na abjuração solene e pública daqueles hereges, que queriam entrar na Igreja, e que depois de imposta uma penitência, eram absolvidos das censuras. Na mesma cerimônia eram anunciadas as penas impostas aos hereges que se recusavam a abjurar os seus erros.

As principais penas impostas pelos inquisidores eram as multas, as contribuições para obras pias, as peregrinações, o servir na cruzada durante um certo tempo, o trazer no fato umas cruzinhas, que perante os fiéis assinalassem o herege arrependido ou absolto, e a flagelação em determinadas ocasiões. As penas maiores, reservadas aos hereges obstinados ou pouco sinceros e pouco sólidos na sua conversão, eram o cárcere durante um certo tempo ou por toda a vida, a confiscação dos bens em proveito do fisco e a entrega deles ao braço secular. Esta última pena, que tinha como resultado para o condenado o suplício de fogo, só era imposta aos obstinados e principalmente aos relapsos. No fim do auto de fé era o condenado levado para fora da Igreja, para um estrado levantado na praça pública, e lá o entregavam aos oficiais civis. O seu suplício só se efetuava no dia imediato, para que o condenado pudesse ainda reconsiderar e entrar em si, pela noite adiante. Se durante a fogueira fizesse a abjuração dos seus erros, era devolvido à Inquisição, e assim se livrava da morte; exceto se fossem relapsos, porque na segunda abjuração não escapavam ao fogo.

Estes suplícios foram em França, por exemplo, relativamente raros, sendo, como diz Vacandard, “a percentagem dos condenados à morte, de um para treze no tribunal de Pamiers, e de um por vinte dois ou vinte três no de Tolosa”.

As penas pecuniárias ou a prisão podiam sempre ser ou mitigadas ou suprimidas pelo inquisidor, quando este julgasse as disposições do delinqüente merecedoras deste favor. Conquanto o campo de ação da Inquisição fosse dilatado, nunca, contudo, abrangeu a toda a cristandade e nem sequer a todos os países latinos. Quase não exerceu a sua influência, por exemplo, nos países escandinavos; e, se algo influiu na Inglaterra, foi só a propósito da questão dos templários e nunca mais. Em Castella e Portugal não foi conhecida antes dos reis católicos Fernando e Isabel (I). Em França quase não funcionou, ao menos seguidamente, senão nas regiões meridionais, no chamado condado de Tolosa e mais tarde no Languedoc. Houve tribunais permanentes no reino de Aragão, nas duas Sicílias e em muitas cidades da Itália e da Alemanha, tornando-se no século XVI notável a atividade deles em Flandres e na Boêmia. Por ocasião do grande cisma perdeu a Inquisição em França a sua influência, a qual passou para os Parlamentos, que pouco a pouco se tornaram o tribunal supremo para todas as questões religiosas. Foi com o Parlamento que os huguenotes tiveram que haver-se; e não puderam com isso dar-se os parabéns.

B. JUÍZO CRÍTICO

Prestou-se a Inquisição eclesiástica, de que acabamos de falar, a atos dignos de censura, como geralmente acontece com as instituições humanas. Tornaram-se verdadeiras iniqüidades certos processos, como o dos templários, no reinado de Filipe o Belo, ou o de Joana d’Arc. Foram tais as queixas que houve, sobretudo por causa das violências praticadas pelos inquisidores de Carcassona, que chegaram a Roma e causaram muito desgosto ao Papa Clemente V, que, em 1306, nomeou uma comissão composta de vários cardeais para irem àquela região a averiguar o que havia de verdade nestas queixas; e tais foram os abusos que observaram nos processos, e tais os maus tratos usados com os encarcerados que tiveram de reformar muitos abusos e despediram todo o pessoal inquisitorial de Carcassona. Muito para lastimar foram também as proezas de um Conrado de Marburgo na Alemanha e de um Roberto de Bougre em Champagne. Bastariam só as muitas cartas dos Papas aos inquisidores a relembrar-lhes as suas responsabilidades, para demonstrar que realmente vários deles e, sobretudo, os seus subalternos tinham incorrido em culpas graves. E o que é mais para notar é que, observa Vacandard, “quando os inquisidores tinham de contar com os soberanos ou com a política, é que os inquisidores se achavam em maior perigo de incorrerem em maiores excessos”. “A parte que o poder civil tomou nos processos dos hereges, diz ele noutro lugar, não foi em favor dos processados, senão muito pelo contrário; e até parece que quanto mais o Estado exercia pressão sobre os tribunais eclesiásticos, mais o processo corria o risco de descambar nas arbitrariedades”.

Pode realmente e deve um católico censurar os excessos, por vezes graves, de certos membros ou clérigos ou leigos dos tribunais da Inquisição; mas praticar-se-ia um grande agravo contra ela, se lhe imputassem os abusos de que alguns dos seus membros se tornaram culpados. Quando é que entre os homens deixou de haver abusos?

Para, por outra parte, se fazer um juízo reto acerca das formalidades e procedimento da Inquisição medieval é mister saber-se contra que espécie de gente ela tinha que haver-se, para assim usar de uns rigores até então desusados nos tribunais eclesiásticos. Houve de, com efeito, os empregar contra os cátaros, sectários ferozes, que renovavam o dualismo dos maniqueus, e que, como estes, admitiam um eterno antagonismo entre o bem e o mal, e que por isso abalavam não só os dogmas e a moral da Igreja, mas também com a mesma paixão e furor arruinavam a ordem social. Era o catarismo uma heresia radical e juntamente uma revolução também radical. Pelos seus anátemas insensatos contra a matéria e a carne, emanações do Mal, condenava toda a propriedade, rejeitava o matrimônio e rematava em puro e execrando pessimismo. Para se poder compreender o perigo social, que esta heresia, grandemente contagiosa, consigo trazia, bastará aduzir aqui o testemunho de um historiador que, não há muito, ousou apresentar-se como apologista dele, Henrique Carlos Lea. “Confessamos, afirma ele, que em tais circunstâncias a causa da ortodoxia e a da civilização e progresso iam a par uma com a outra. Não há dúvida que, se o catarismo chegasse a dominar ou mesmo só a ombrear com o catolicismo, a sua influência houvera sido desastrosa”. Não menos significativo é o parecer de um escritor, que nem por sombra ousaríamos equipar àquele infeliz polemista americano, mas que também não pode ser suspeito de parcialidade para com a Igreja. “Nem sempre, diz este escritor, Paulo Sabatier, o Papado esteve ao lado da reação e do obscurantismo; quando ele, por exemplo, deu cabo dos cátaros, a vitória dela foi a vitória do bom senso e da razão”. [1]

Seria do mesmo modo uma falta de equidade o não se terem presentes, ao falar-se da Inquisição, as idéias, ou como hoje se diz, a mentalidade dos tribunais civis da Idade Média, quanto à repressão dos delitos e dos crimes. As garantias indispensáveis aos processados e os direitos de defesa eram excessivamente menosprezados. Ainda em pleno século XVI “por toda a parte dominava a diversidade, a incerteza e a arbitrariedade nos tramites do foro, diz Poullet; o acusado ficava privado da garantia da publicidade, que se requer nos debates judiciais; e o juiz podia, querendo, recusar o advogado ao acusado; e este nem podia assistir ao interrogatório das testemunhas”. A tortura estava em voga na maioria dos tribunais europeus, e continuou ainda por muito tempo, depois de os tribunais inquisitoriais a terem abolido. E o mesmo se diga da escolha das penas impostas aos culpados. “Basta atentar, diz Lea, nas atrocidades da legislação criminal da Idade Média, para se ver quanta falta faziam os sentimentos de piedade nos homens de então. Esmagar sob a roda, meter em água fervente, queimar vivo, enterrar vivo, escorchar vivo, esquartejar vivo, eram os meios ordinários admitidos pelos criminalistas daqueles tempos para impedir as recaídas nos mesmos crimes, e para com estes exemplos meter medo às multidões, bastante refratárias aos sentimentos de humanidade”. E tais rigores eram desconhecidos dos tribunais ordinários da Igreja, isto é, no foro diocesano; nos tribunais da Inquisição, porém, em razão da gravidade maior dos perigos, empregavam-se alguns dos castigos tomados da legislação civil, os quais ou desapareceram ou se foram atenuando à medida que iam desaparecendo os perigos, que davam ocasião a se fazer uso deles.

II – Origem e natureza da Inquisição Espanhola.

A. NOTÍCIA HISTÓRICA

Foi a Inquisição espanhola fundada por fins do século XV, afim de atalhar os males do judaísmo, que fazia afluir à nação um grande número de judeus só aparentemente convertidos ou judeus relapsos. Foi a introdução da Inquisição em Espanha o penúltimo ato de um drama que, havia séculos, se vinha desenrolando e que devia terminar em 1492 pela expulsão dos judeus da Península.

Tinham eles já grande influencia durante o governo dos reis visigodos; e foram eles que abriram as portas da Espanha aos mouros; e sob o domínio dos Ommeiadas gozaram de uma prosperidade, a que só no século XII os Almohades conseguiram por termo. Voltando novamente a Castela, puderam reaver a sua influencia dominadora. O seu sistema de comércio e as grandes usuras, que exigiam, foram a causa de ruína para muitas fortunas. Assacavam-lhes além disto crimes horrendos, assim como também maior facilidade para reproduzirem e propagarem a peste negra, que nos fins do século XIV infestou grandemente os povos; com o que se suscitaram contra eles inúmeras perseguições, sob o peso das quais se viram obrigados a optar ou pelo batismo ou pela morte.

Um grande número deles abraçaram sinceramente o cristianismo, movidos pelas pregações de varões apostólicos e mormente de S. Vicente Ferrer, que desde 1412 se deu à evangelização deles; mas, a par desses verdadeiros prosélitos, havia uma grande multidão de falsos convertidos, que só de nome eram cristãos. Estes judeus, disfarçados de cristãos, diz Maranos, continuavam com as suas práticas supersticiosas, conseguiram meter-se por toda a parte, e trabalhavam com as suas riquezas e influência por implantar o judaísmo em terras de Espanha e por nelas destruir a religião cristã. E estes é que, depois de terem escalado os mais altos postos do Estado, se mostram mais intolerantes com os seus irmãos convertidos, que, como era de esperar, se tornaram judeus relapsos.

Impunha-se, portanto, a instituição de um tribunal, que pusesse cobro às vinganças populares e que servisse a Espanha de defesa contra um inimigo que comprometia a própria existência nacional.

E assim é que foi a Inquisição considerada como o remédio mais eficaz para a triste situação da Espanha; e porque ela por esse tempo tinha perdido toda a sua importância neste país, resolveram os Reis Católicos Fernando e Isabel restabelece-la em seus Estados, posto que sobre novas bases.

Precisava-se para isto a autorização da Santa Sé, a qual o Papa Sixto V concedeu por breve de 1° de novembro de 1478. “Foram dados plenos poderes a Fernando e a Isabel para nomearem dois ou três inquisidores, arcebispos, bispos ou outros dignitários eclesiásticos, abonados pela sua prudência e virtudes, padres seculares ou religiosos, de quarenta anos pelo menos, de costumes irrepreensíveis, lentes ou bacharéis em Teologia, doutores ou licenciados em direito canônico, ou reconhecidos como aptos depois de se sujeitarem a um exame especial”. Delegava o Papa nestes inquisidores a jurisdição necessária para, em conformidade com o direito e as normas de costume, instaurarem processo aos culpados, e concedia aos soberanos espanhóis o poder de os destituírem e de nomearem outros para o seu lugar. Assim se expressa Llorent na sua História Crítica da Inquisição Espanhola. [2]

Antes de se empregarem os meios de rigor procurou-se ainda, a pedido da rainha Isabel, chamar ao bom caminho os transviados, por meio de pregações e de outros modos brandos, mas todos foram baldados; a obstinação desta gente frustrou mais esta tentativa. Não restava, pois, aos soberanos senão o uso de meios mais enérgicos; e por isso é que, em virtude da bula do Papa, nomearam a 17 de setembro de 1480, a Miguel Morillos e a João Martins como inquisidores para a cidade e diocese de Sevilha e como seu adjuntos dois padres seculares. Começou logo o tribunal a funcionar e os judaisantes obstinados foram entregues ao braço secular. Uma peça importante veio, porém, acrescentar-se à engrenagem deste tribunal, a do inquisidor-mór. Confiou Sixto V este cargo, em 1483, ao dominicano Tomaz de Torquemada, depois de lhe haver designado as atribuições. Foi mais, associado a este cargo de inquisidor-mór, o conselho da Inquisição, com o fim de principalmente se dar andamento às apelações, sendo Torquemada quem instalou este tribunal, em virtude dos poderes, que do Papa recebera, para delegar a sua autoridade.

Um fato importante registra-se aqui para bem se caracterizar a Inquisição Espanhola; e vem a ser que “assim como foi o Papa que, como cabeça da Igreja, tinha autorizado a nomeação dos primeiros inquisidores, assim foi também ele, quem por um ato importante fixou pela primeira vez as normas que a nova instituição devia observar”. Afim de, com efeito, suprimir as demasiado freqüentes apelações para a corte de Roma, que de ordinário não passavam de uns pretextos, destinados a dificultar os tramites de Sevilha como juiz de apelação e como representante seu nas causas submetidas à Inquisição.

B. NATUREZA DA INQUISIÇÃO ESPANHOLA

Seu duplo elemento. Alguns autores, como de Maistre, Banke, Hefele, Hergenroether, Knoepfler, procuraram apresentar a Inquisição Espanhola como uma instituição puramente política, e como uma fundação do Estado, estranha à ação da Igreja. O espanhol Rodrigo demonstrou, na sua Historia verd. da Inquisição, ser semelhante asserção insustentável. “Os tribunais do Santo Ofício, diz ele, eram tribunais eclesiásticos, tanto em relação às causas, sobre que tinham de julgar, como em relação à autoridade, de que gozavam. Se, porém, se olhar à delegação, que pela coroa era dada aos juízes, pode muito bem dizer-se que estes tribunais tinham um caráter misto”, isto é, a Inquisição Espanhola era um tribunal eclesiástico, mas tinha poderes, que lhe eram conferidos pela autoridade real.

Eram os membros do conselho da Inquisição funcionários do Estado e nomeados pelo rei, ainda que eram escolhidos dentre os propostos pelo inquisidor-mór; e, como tais, recebiam naturalmente do rei a jurisdição secular; mas não tinham poder algum espiritual, sem que antes fossem investidos deste poder pelo delegado do Papa. [3]

Apresenta-se-nos, pois, a Inquisição Espanhola como uma instituição de natureza mista, em que o elemento religioso conserva uma preponderância bem marcada. E o fato de os juizes eclesiásticos entregarem os réus ao braço secular, vem a confirmar esta asserção; porquanto, como se explicaria este procedimento, se a Inquisição espanhola fosse apenas uma instituição do Estado ou um tribunal real? Um tribunal, que tem por costume ordinário e incessante, entregar os culpados ao tribunal secular, não é em si uma corporação secular, a não ser que este epíteto se tome uma acepção inteiramente diversa da que ordinariamente tem. Se, pelo contrário, se admite o caráter especialmente religioso deste tribunal, já facilmente se explica o recusarem-se os juízes deste tribunal a porem em execução as sentenças de pena capital, e o implorarem estes a clemência do poder secular em prol dos condenados, o que, como é sabido, foi uma norma usada em todos os tribunais eclesiásticos e preceituada pelo direito canônico.

OBSERVAÇÕES – A má sorte da Inquisição Espanhola esteve em que teve de haver-se com homens que se tinham feito cristãos à força e que, como relapsos, tão infiéis a Cristo como a Moisés, constituíam um contínuo perigo para a sociedade cristã.

Outro grande mal para a Inquisição espanhola foi a sua demasiada dependência da coroa. Recebia certamente o Santo Ofício do Papa, a sua jurisdição e as normas, em si muito comedidas; mas estava muito influenciada pela coroa, pelo que estava em contínuo perigo de se tornar uma máquina do Estado, um instrumentum regni. E foi o que infelizmente aconteceu, não obstante a oposição dos Papas, que sempre encontravam grandes dificuldades mesmo em salvaguardar os seus direitos de apelação, que viram os seus breves desfavoráveis à Inquisição sonegados (1509); e a excomungar os inquisidores de Toledo. E outros, como Pio V, só com muito custo puderam avocar a si as causas, que só deles dependiam, como aconteceu com a do infeliz arcebispo de Toledo, Bartolomeu de Carranzas.

III - Legitimidade, por principio e por direito, da Inquisição.

Exposta assim a história da Inquisição eclesiástica, e da mista, peculiar à Espanha, só nos resta agora resolver a questão de princípio e do direito, em que ela se funda. Será realmente justa a repressão das heresias, e até por meio de penas temporais, se se julgarem necessárias? Será ela de fato legítima tanto por parte da Igreja como por parte do Estado?

Que seja legítima por parte da Igreja, não pode haver dúvida alguma para um católico, pois que todo os Papas e concílios, os santos e doutores e a Escritura com a Tradição, são concordes em afirmar que a Igreja tem o direito e o dever de olhar pela pureza da fé, e de punir, até com penas temporais, aqueles dos seus filhos, que se apartarem da verdade e que por seus exemplos se tornarem pedra de escândalo para os seus irmãos [4]. Este direito inalienável, que lhe vem dos poderes que Jesus Cristo lhe concedeu, sempre o exerceu a Igreja, a qual olhou sempre os crimes de heresia, de apostasia e de sacrilégio como tão dignos de castigo como os atentados contra a propriedade, a honra e a vida do próximo.

São esta doutrina e estes procedimentos da Igreja inteiramente razoáveis e justos; pois que o direito e o dever de uma sociedade perfeita é encaminhar real e eficazmente os seus membros para a consecução do fim, que ela se propõe, assim como olhar pela sua própria conservação. Ora, sendo a Igreja uma sociedade perfeita, provida por seu divino Fundador de tudo o que é necessário à sua conservação e vitalidade, necessariamente possui o direito e, conseqüentemente, o poder de fazer leis e de punir os seus súditos que as menosprezarem. E, se eles relutarem ou se mostrarem rebeldes contra ela, devios et contumaces, como se expressa Bento XIV, pode e deve também, como mãe terna, sim, mas não fraca, corrigi-los, para os fazer voltar aos seus deveres e para impedir que os demais se deixem arrastar pelos maus exemplos deles. Procede ela, obrando assim, como procederia um pai de família, que, por meios prudentes e eficazes, corrige os seus filhos e procura preservar o seu lar de tudo o que seja de natureza a perturbar-lhe a paz e o seu bem estar, ou como procedem hoje em dia os governos, quando, por um sistema de precauções enérgicas, impedem que entre a peste, ou a cólera ou qualquer outra moléstia epidérmica, ou quando organizam corporações de vigilância destinadas a descobrir os malfeitores, os assassinos, os conspiradores e aos entregarem à vindica das leis, para assim lhes frustrarem os seus sinistros e malévolos intentos.

O que é a varinha para o pai de família, ou o que são os cordões sanitários para os países ou as comissões medicas, os corpos de polícia e os tribunais, era a Inquisição para sociedade religiosa, isto é, um meio de conservação para ela e de preservação para os seus membros. [5]

Quanto à legitimidade por parte do Estado, para ela se poder compreender bem, é mister reportar-se aos tempos, em que ela foi fundada. Nos tempos, em que, de fato, a Inquisição se fundou, a sociedade européia era completamente católica, como todos sabem, e era tão geral a convicção acerca da verdade dos dogmas católicos, como nas sociedades modernas pode sê-lo a convicção acerca da verdade, relativa aos princípios da lei natural. Tinha-se e, com razão, como coisa certa, que a revolta contra Deus não era menos digna de castigo do que a revolta contra o próprio soberano.

Tanto os soberanos como os vassalos consideravam, além disto, a conservação da religião católica, a única verdadeira e divina para eles, como um bem social, muito mais transcendente do que todos os bens naturais. E assim se achava a legislação dos diferentes países da Europa baseada numa íntima aliança a Igreja e o Estado; pelo que qualquer desobediência contra a religião ficava, ipso facto, punível segundo as leis civis, logo que por atos públicos se desse a conhecer.

Correndo as coisas por esta forma, era muito natural a fundação de tribunais que tivessem por fim averiguar, por meio dignos e legais, as infrações externas das leis religiosas, discernir os hereges obstinados dos que só acidentalmente caiam nalguma fraqueza passageira, e punir os verdadeiros culpados, lavando da culpa os inocentes. Eram estes tribunais tão fundados em justiça como o são modernamente os tribunais destinados a averiguar os delitos contra a segurança do Estado, ou contra a pessoa, a honra e os haveres dos cidadãos. Dissemos exteriores, pois está claro que os recônditos das consciências só a Deus são patentes; e por isso as leis humanas não podem estender-se aos atos internos, nem castigam senão as infrações que se revelam por sinais exteriores.

E, porque os princípios e povos da Idade Média se achavam compenetrados destas verdades, é que nunca julgaram violar a liberdade de consciência, quando puniam a heresia e a apostasia.

Em conclusão, tratando-se neste caso de uma sociedade estabelecida segundo os princípios que acabamos de expor, e governada por uma legislação orientada por esta forma, ninguém, que pense sensatamente, ousará negar ter a Igreja procedido muito atiladamente em, de combinação com o poder civil, encarregado de executar os castigos, estabelecer um tribunal destinado a, com todas as garantias da justiça, averiguar quais fossem os réus de delitos graves e a lhes instaurar os processos, e mais, sendo estes crimes considerados como grandemente nocivos tanto à sociedade civil como à religiosa.

OBSERVAÇÃO – Se hoje se encontram homens que sentem uma tal ou qual repugnância em admitir esta conclusão, é porque o ambiente social, que se presentemente se acha impregnado de muitos erros, lhes não permite ver com lucidez a verdade, que outrora abraçariam com prazer. E não descansam os inimigos da religião, para mais facilmente propagarem o mal, em fazerem crer que qualquer repressão da impiedade e da heresia é um atentado contra os que eles falsamente chamam sagrados direitos da consciência.

É, sem embargo, fora de toda a dúvida, que o homem não tem nem pode ter, como hoje querem muitos, o direito de pensar, de escrever tudo o que lhe vem à cabeça. Sendo o homem criado para Deus e estando tudo dependente de Deus, jamais lhe será lícito blasfemar ou ultrajar ao Autor da sua existência; tornando-se pelo batismo filho da Igreja, jamais lhe será permitido insurgir-se contra sua mãe e pôr-se em revolta contra ela; sendo membro de uma sociedade, é-lhe vedado socavar os fundamentos em que assenta essa sociedade; sendo dotado de livre arbítrio, para assim, de um modo meritório, poder praticar o bem, não a de servir-se deste dom para ir perverter os seus irmãos e os arrastar para o mal.

É do mesmo modo incontestável haver erros, que implicam culpa; há desvarios da mente, que praticamente andam acompanhados de perversidade moral. Está o homem, acima de tudo, obrigado a abraçar a verdade e a libertar a sua inteligência: e a razão é clara; pois que para querer é necessário conhecer; e para retamente querer é necessário conhecer a verdade. Se, de fato, não houvesse regras ou normas para as idéias, também as não poderia haver para as ações. Se assim não fora, aonde iriam parar a moral e a sociedade? Ora, bem os pecados de incredulidade, de heresia e de apostasia avantajam-se a quaisquer outros erros, quando há culpa. Os atentados contra a honra, contra as vidas ou contra os haveres de um homem, simples criatura, não são atos que se possam comparar na gravidade com os crimes, que diretamente vão atentar contra a soberana majestade de um Deus. Negar-se obstinadamente a crer uma revelação feita por Deus e, como tal, bastantemente demonstrada e reconhecida, constitui um crime de lesa majestade divina, pois é, em certo modo, negar a veracidade infinita de Deus.

Ora, nos tempos e nos países em que dominava a Inquisição, era a todos fácil ter um certeza moral completa (ainda que proporcionada ao estado e capacidade de cada individuo) acerca da divindade da religião cristã e da Igreja Católica.

IV. Que juízo se há de fazer sobre a Inquisição em geral, e em especial sobre a Inquisição na Espanha.

Mas não será pelo menos digno de censura o modo, como este direito foi posto em prática; não houve realmente crueldade por parte da Inquisição da Espanha? Não tem esta questão a importância da que acima tratamos, e em parte lhe demos a solução. Façamos apenas, para remate, algumas observações.

1. Seria primeiramente absurdo imputar à Igreja os abusos, de que são unicamente responsáveis os juizes inquisitoriais. Assim como não podem imputar a um indivíduo senão os atos e os efeitos provenientes da sua atividade pessoal, assim se não pode também acusar uma corporação senão dos resultados que se deram em razão da sua existência e da sua ação como associação, ou, por outras palavras, em razão dos seus princípios constitutivos, das suas leis e do exercício regular da sua autoridade. Quem é que, pois, com justiça ousaria incriminar as leis civis ou os regulamentos militares pelos abusos cometidos pelas autoridades encarregadas de executarem essas mesmas leis e regulamentos, abusos que essas mesmas leis e regulamentos condenam?

Ora, os abusos, que se comprazem em assacar à Inquisição, não são de nenhum modo um fruto dos princípios professados pelo cristianismo; estão em completa oposição com o seu espírito, e foram de fato severamente censurados pelos soberanos Pontífices todas as vezes que deles tinham notícia. “Os inquisidores eram homens, observa Vacandard, e muito seria para espantar que nunca tivessem abusado dos poderes que lhes tinham sido confiados. Mas nunca a Igreja jamais pensou em lhes abonar todos os seus atos; deixa-os à apreciação dos historiadores; e o que ela só quer é que este assunto se trate com uma serena imparcialidade e um são critério. Os que assim fizerem o estudo da Inquisição facilmente observarão que o uso da força em prol da fé foi por vezes além dos limites da equidade e não serviu aos interesses da religião; nem será a Igreja que o negue; e nada encontrarão em sua doutrina que os impeça de pensar deste modo.

2. Convém também ter presente que a crueldade dos suplícios não era única e exclusivamente praticada pela Inquisição. Já dissemos que o sistema penal se ressentia muito da influencia da barbárie, influência que só lentamente viria a desaparecer [6].

Temos um monumento da extremada severidade dos tribunais daquele tempo na Carolina, código penal de Carlos Quinto, pelo qual se regeu a Alemanha até o último século.

3. E, demais disto, quando se comprassem em declamar contra as torturas da Inquisição, esquecem-se de nos dizer ou fingem ignorar que este meio de se descobrir a verdade estava então em voga em todos os tribunais da Europa. E assim, quando por exemplo, os conselhos judiciais da Bélgica foram, em 1765, consultados acerca dos projetos de reforma que conviria introduzir no direito criminal, relativamente à abolição eventual da tortura, todos os do conselho, à uma, optaram pela sua conservação. E, quando mais tarde foram de novo ouvidos sobre o mesmo assunto, ainda todos se mantiveram firmes no seu primeiro parecer, quanto à abolição das torturas.

Note-se, além disto, que foi a Inquisição a que primeiro renunciou à tortura, e muito antes dos outros tribunais da Europa. “É coisa certa, afirma Llorente, que há já muito tempo que a Inquisição não emprega a tortura”. E, além disto, nunca ela permitiu, como permitiam os tribunais civis, se recorresse várias vezes a ela durante o mesmo processo; e exigia sempre a presença do médico para verificar o momento em que a vida do supliciado começasse a correr perigo.

4. Com respeito à Inquisição Espanhola não temos dificuldade em confessar que realmente houve numerosos abusos; nem isto é para estranhar, pois eram homens os que intervinham como juízes. Em todo o caso é mister deslindar bem as responsabilidades. Os papas é que, como vimos, se mostraram sempre adversos a uma demasiada severidade tanto em clamar a atenção sobre os abusos como em coibir. Vejam-se, por exemplo, as reclamações logo no começo feitas por Sixto IV e as precauções por ele tomadas contra a demasiada severidade e contra a irregularidade dos tramites seguidos pelos inquisidores. [7]

Convém ainda notar que as crueldades imputadas à Inquisição da Espanha andam vulgarizadas com uns exageros que causam espanto e que revelam uma grande má fé. Até o próprio Llorente, hostil à Igreja, confessa que os tribunais da Inquisição eram secos, bem abobadados, e que eram uns palácios, comparados com os cárceres dos outros tribunais europeus. Nenhum encarcerado da Inquisição era, assegura ele, amarrado com correntes ou carregado de grilhões.

Sobem por vezes, note-se ainda, a centenas de milhares o número de vítimas imoladas pela Inquisição espanhola durante um curto espaço de tempo. Ora, segundo o supracitado Llorente, o seu número não vai além de umas 35.000 durante 331 anos que durou a Inquisição; e ainda neste número se contam diversos gêneros de malfeitores, propriamente ditos, como são, por exemplo, os contrabandistas, os mágicos, os feiticeiros e os usurários, que dependiam deste tribunal. Além de que este mesmo número é evidentemente exagerado; pois que a dar-se, por exemplo, crédito ao próprio Lorente, nos autos de fé em Toledo nos dias 12 de fevereiro, 1 de maio e 1 de dezembro, do ano de 1486, contaram-se como, respectivamente, condenados e entregues ao braço secular, 700, 900, 750. Ora, o fato é que não houve nem uma só vítima; pois eram simplesmente culpados, mas nenhum deles foi supliciado. [8]

Faça-se uma comparação da tão falada severidade da Inquisição espanhola com a pouco falada crueldade, praticada por Isabel de Inglaterra, e ver-se-á que, como assegura o protestante Guilherme Cobett, mais gente matou num só ano esta sanguinária mulher do que a Inquisição durante todo o tempo da sua existência. Acresce ainda que muito mais violenta foi por toda a parte a intolerância dos protestantes contra os católicos do que a destes contra os protestantes: a perseguição sanguinolenta foi o meio empregado pelos príncipes luteranos para arrancar os povos à Igreja. E, contudo, é só contra a Igreja católica que se ouvem palavras de censura e de incriminações.

“Porque, pergunta Langlois, pouco favorável à Igreja, veio afinal a Inquisição a ser o bode expiatório das cóleras que a lembrança das antigas perseguições religiosas ainda hoje está atiçando? Milhares de seres humanos foram queimados vivos por causa das suas crenças, antes de a Inquisição existir. Quando se deu o segundo grande assalto, em parte vitorioso, que a hierarquia católica sofreu no século XVI, quase só em Espanha florescia a Inquisição propriamente dita. E foi acaso menos para lamentar o martirologio dos países, em que ela deixou de influir, como em França, ou em que ela nunca entrou , como na Inglaterra dos Lancastres e dos Tudores? Sob o regime do estatuto De hærético comburendo, ou sob o regime inquisitorial na Espanha, de Carlos V? Foram mais numerosos os cátaros, que morreram vítimas da Inquisição albigense, ou os anabaptistas, que a Alemanha luterana ou calvinista imolou ao seu partidarismo? E não se igualaram as grandes perseguições da Igreja Oriental, que fundaram a ortodoxia grega no sangue dos dissidentes, às mais cruéis que assolaram o ocidente?

Mas, tempos novos, novos costumes. Tem, sem dúvida a Igreja o direito de punir os seus filhos rebeldes; mas por ela ter feito uso deste direito, por assim o julgar conveniente, não se segue que haja sempre de fazer uso dele; e deve até pô-lo de parte, quando ele se tornar contraproducente. E há já muito tempo que, de fato, renunciou a servir-se dele; e por isso já não é mais que como uma lembrança histórica ou como um espantalho ao serviço da ignorância e da impiedade.

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NOTAS:

[1] Guiraud, na Vie de S. François d’Assise, demonstrou para os valdenses, para os fraticelos, para os hussitas e para os lollardos o mesmo que Sabatier demonstrou para os cátaros. “Se o rol dos sectários queimados ou emparedados se riscassem os sectários que foram condenados como perturbadores da ordem pública e como malfeitores contra o direito comum, ficaria o número dos condenados por heresia reduzido a um pequeno número”. Vacandard, L’Inquisition.

[2] Teve a Inquisição espanhola por historiador um homem abjeto, chamado Llorente, cônego de Toledo e secretário geral da Inquisição, o qual se vendeu ao rei Joseph e se enriqueceu com os despojos dos bens nacionais. Depois de expulsos os franceses, a qual ele teria sacrificado a sua pátria, refugiou-se em Paris, donde, por causa dos seus escritos, foi expulso em 1822. Depois de escrever a sua história em 4 volumes, teve o cuidado de queimar a maior parte dos documentos relativos à inquisição, os quais o poderiam sem dúvida ter convencido de caluniador. Respondeu-lhe José de Maistre pelas suas Lettres à un gentilhomme russe: “A obra escrita por este lastimoso escritor é o como evangelho a que recorrem todos os adversários da Inquisição. Nele ao menos deviam ver como os cárceres do Santo Ofício e o seu sistema de impor as penas revelam preocupações humanas e indulgentes, desconhecidas para todos os governos e em todos os tribunais civis daquele tempo”.

[3] Supõem alguns ser a Inquisição uma instituição puramente eclesiástica; o que é um exagero, reconhecido até pelos próprios protestantes. Ainda não há muito escrevia Philippson, ao fazer o juízo crítico de uma obra de Schaefer: “Engana-se este senhor, quando se empenha em provar que a Inquisição de Espanha era um tribunal composto de padres. A verdade é que ele estava submetido à vontade do rei; deste é que sempre recebia a direção; o conselho superior era nomeado pelo rei, e, se o inquisidor-mor precisava ter a aprovação papal, não era esta mais que uma pura formalidade, sem conseqüência alguma prática. O rei podia, além disto, forçar o inquisidor-mór a se demitir do seu cargo. E nos negócios mais importantes o conselho da Inquisição pedia diretamente as ordens do rei. E Philippe II sobretudo, como protetor do Santo Ofício, impediu sistematicamente qualquer ingerência do Papa nos negócios da Inquisição espanhola”.

[4] Não se deve esquecer que, quando se discute acerca da Inquisição, a questão não tem nada que ver com os infiéis ou com os pagãos e judeus, sobre os quais a Igreja não tem nenhuma autoridade, nem jamais sonhou em os constranger pela força a se submeterem às suas ordens; o assunto diz unicamente respeito aos cristãos, aos filhos da Igreja, aos que, regenerados pelo batismo, ficaram submetidos às suas leis. Os primeiros, diz S. Tomás, não devem à força ser obrigados a obedecer à Igreja; os outros, pelo contrário, devem ser constrangidos.

[5] “A Inquisição, o braço secular! Eis os palavrões que soam com terror aos ouvidos dos contemporâneos. Mas nada de medos infantis. Para se julgar do passado, é mister que nos formemos uma alma histórica, uma alma de antepassado. A Inquisição, falo da romana, apresenta-se com rigores, que todos os espíritos retos do tempo, em que ela funcionava, consideravam como justos e necessários, porque os hereges se lhes antolhavam, e com razão, como perigosos perturbadores da sociedade assente sobre o princípio da unidade cristã, que se lhes afigurava com direito pleno de defender as suas instituições fundamentais, do mesmo modo que as modernas sociedades se julgam com direito para defender as suas contra os anarquistas, os niilistas e os coletivistas... Os que se procuram convencer de que os rigores são baldados, e de que a idéia se não reprime, estarão acaso bem seguros de que bastariam somente os meios persuasivos, atualmente mesmo, para salvaguardar a ordem social contra a propaganda subversiva? Seja, porém, qual fora a sua opinião, o certo é que a dos nossos pais não admitia dúvidas. Quando a Igreja lançava mão da severidade, fazia-o de acordo com o sentir geral; e o Estado, ao castigar os hereges, sobretudo relapsos, julgava fazer uma obra grandemente social. Fica deste modo justificado o princípio em que se baseia a Inquisição”. (Vacandard, De la tolerance religieuse).

[6] O que nos diz Poullet acerca da jurisprudência criminal do Brabante, se há de também aplicar ao resto da Europa. Queimavam-se vivos naquele tempo os moedeiros falsos; vergastavam-se ou condenavam-se à morte os falsificadores de pesos e medidas; o roubo com escada tinha o castigo de garrote; e os convictos de recidivos em questão de roubo eram igualmente condenados à morte. Não seria difícil demonstrar que em geral os tribunais da Inquisição se mostravam sob todos os respeitos muito mais eqüitativos e menos rigorosos para com os acusados do que todos os tribunais civis. Hafele na sua Inquisition d’Hespagne nos dá a prova desta asserção acerca do tribunal daquele pais, o mais incriminado de todos; e isto baseando-se nos dados fornecidos pelo próprio Llorente.

[7] [N. do Tradutor] Note-se o modo seguro e posição firme que o autor aqui toma defendendo a Igreja e demonstrando ser ela irresponsável pelos abusos inquisitoriais. Esta deve ser a tática, que se há de seguir, quando nos vierem com esta ária, infinitas vezes e em todos os tons realejada, dos Torquemadas, dos cárceres, das fogueiras da inquisição: mostrar como nunca um homem de juízo pode incriminar a Igreja romana por abusos, que ela sempre condenou. Mau serviço prestam, pois, à religião e à Igreja, cremos nós, os apologistas que para defendê-la, julgam também haver de defender a inquisição da península hispânica, à qual somente se referem, e não à romana, os escrevinhadores e declamadores, quando querem mover as turbas ignorantes para um determinado fim. Nesse terreno é que eles se querem e nos querem; mas nós não devemos querê-lo, por que é falso. Não lhe demos neste ponto nem lugar sequer a discussões. “Isso dos horrores da inquisição ou dos abusos por ela cometidos, digamos-lhes mais ou menos, não tem nada que ver conosco, católicos romanos: não vem nada a propósito tratando-se da religião católica, apostólica, romana. Canis extra chorum. Convém, sim, varrermos ou mostrarmos estar varrida a testada do Vaticano: as dos palácios inquisitoriais de Sevilha, de Granada ou, se quiserem, de Coimbra que as varram outros como quiserem ou puderem”.

[8] Lancemos uma vista de olhos sobre o que então se passava numa região protestante. Em Nuremberg, uma das cidades mais cultas da Alemanha morreram no espaço de 40 anos (1577-1617) 356 pessoas no cadafalso dentre as 55.000 almas de que se compunha o distrito judicial: a Inquisição espanhola houvera, proporcionalmente falando, supliciado 55.960 desventurados neste mesmo espaço de tempo. Em Nordlingen, que contava 6.000 habitantes, morreram em 4 anos (1590-1594) trinta e cinco feiticeiros: guardando-se a mesma proporção, isto é, mais 11.000 ainda do que ela em realidade, segundo Llorente, mandou supliciar, para toda a sorte de crimes, durante todo o tempo da sua existência. E chamam excepcionais sobre todos os outros rigores empregados pela Inquisição da Espanha!






(Pe. W. Devivier, S.J., Curso de Apologética Cristã. Editora Melhoramentos, São Paulo, 3a. edição, 1925)

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