Muito se ouve falar sobre a Santa Inquisição dos tempos medievais. No entanto, a maioria daqueles que condenam a Igreja pelas práticas deste período não levam em conta o contexto histórico em que aconteceram. Que tal aprender um pouco mais sobre este assunto tão polêmico?
Galileu Galilei no Tribunal da Inquisição |
Nos primeiros séculos de sua história, a Igreja antiga aplicava penas espirituais, principalmente a excomunhão, e não pensava em usar a força bruta. A partir do momento em que o Império Romano se tornou cristão, os césares quiseram continuar exercendo o mesmo direito que possuíam quando os romanos eram pagãos, ou seja, qualquer heresia ou ofensa à religião oficial do império era considerada como crime contra a Majestade Divina.
As penas aplicadas, do século IV em diante, eram geralmente a proibição de fazer testamento, a confiscação dos bens e o exílio.
Agostinho, de início, rejeitava qualquer pena temporal para os hereges. Vendo, porém, os danos causados pelos donatistas, propugnava os açoites e o exílio, não a tortura nem a pena de morte. Já que o Estado pune o adultério, argumentava, deve punir também a heresia, pois não é pecado mais leve a alma não conservar fidelidade a Deus do que a mulher trair o marido. Afirmava, porém, que os infiéis não devem ser obrigados a abraçar a fé, mas os hereges devem ser punidos e obrigados ao menos a ouvir a verdade.
As origens da lnquisição
No antigo Direito Romano, o juiz não empreendia a procura dos criminosos, só procedia ao julgamento depois que Ihe fosse apresentada a denúncia. Até a Alta ldade Média, o mesmo se deu na Igreja: a autoridade eclesiástica não procedia contra os delitos se estes não Ihe fossem previamente apresentados. No decorrer dos tempos, porém, esta praxe mostrou-se insuficiente.
Além disto, no século XI apareceu na Europa uma nova forma de delito religioso, isto é, uma heresia fanática e revolucionária, como não houvera até então: o catarismo (do grego katharós, puro) ou o movimento dos albigenses (de Albi, cidade da França meridional, onde os hereges tinham seu foco principal). Considerando a matéria por si, os cátaros rejeitavam não somente a face visível da lgreja, mas também instituições básicas da vida civil — o matrimônio, a autoridade governamental, o serviço militar — e enalteciam o suicídio. Desta maneira, constituíam grave ameaça não somente para a fé cristã, mas também para a vida pública.
Em bandos fanáticos, às vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros provocavam tumultos, ataques às igrejas e etc. por todo o decorrer do séc. XI até 1150 aproximadamente, na França, na Alemanha, nos Países-Baixos...
O povo, com a sua espontaneidade, e a autoridade civil se encarregavam de reprimi-los com violência: não raro o rei da França, por iniciativa própria e a contragosto dos bispos, condenou à morte pregadores albigenses, visto que procuravam destruir os fundamentos da ordem constituída.
Foi o que se deu, por exemplo, em Orleãs (1017) onde o Rei Roberto, informado de um surto de heresia na cidade, compareceu pessoalmente, procedeu ao exame dos hereges e os mandou lançar ao fogo: a causa da civilização e da ordem pública se identificava com a fé! Enquanto isso, a autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas espirituais (excomunhão, interdito, etc.) aos albigenses, pois até então nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido combatida por violência física. Santo Agostinho e antigos bispos, São Bernardo, São Norberto e outros mestres medievais eram contrários ao uso da força. "Sejam os hereges conquistados não pelas armas, mas pelos argumentos", admoestava São Bernardo (In Cant, serm. 64).
Muito significativo, por exemplo, é o episódio seguinte: o Papa Alexandre III, em 1162, escreveu ao Arcebispo de Reims e ao Conde de Flândria, em cujo território os cátaros provocavam desordens: "Mais vale absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a vida de inocentes... A mansidão mais convém aos homens da Igreja do que a dureza... Não queiras ser justo demais (noli nimium esse iustus)."
Entretanto, a autoridade civil continuava a agir contra os sectários. Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador Frederico II, um dos mais perigosos adversários que o Papado teve no século XIII.
Em 1220, este monarca exigiu que todos os oficiais de seu governo prometessem expulsar de suas terras os hereges reconhecidos pela Igreja, declarou a heresia crime de lesa-majestade, sujeito à pena de morte, e mandou dar busca aos hereges.
Em 1224 publicou o decreto mais severo do que qualquer das leis citadas pelos reis ou Papas anteriores: as autoridades civis da Lombardia deveriam não somente enviar ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo bispo, mas ainda cortar a língua aos fanáticos a quem, por razões particulares, se houvesse conservado a vida. É possível que Frederico II visasse a interesses próprios na campanha contra a heresia, pois os bens confiscados redundariam em proveito da coroa.
Em síntese, pode-se dizer o seguinte:
- A Igreja, nos seus onze primeiros séculos, não aplicava penas temporais aos hereges, mas recorria às espirituais (excomunhão, interdito, suspensão...). Somente no século XII passou a submeter os hereges a punições corporais. E por quê?
- As heresias que surgiram no século XI (as dos cátaros e valdenses), deixavam de ser problemas apenas religiosos de desvios de doutrina, ao se tornarem movimentos sociais anarquistas, que contrariavam a ordem vigente e convulsionavam as massas com incursões e saques. Assim tornavam-se um perigo público.
- O Cristianismo era patrimônio da sociedade, à semelhança da família hoje. Aparecia como o vínculo necessário entre os cidadãos ou o grande bem dos povos. Por conseguinte, as heresias, especialmente as turbulentas, eram tidas como crimes sociais de excepcional gravidade.
- Não é, pois, de estranhar que as duas autoridades – a civil e a eclesiástica – tenham finalmente entrado em acordo para aplicar aos hereges as penas reservadas pela legislação da época aos grandes delitos.
- A lgreja foi levada a isto, deixando sua antiga posição, pela insistência que sobre ela exerceram não somente monarcas hostis, como Henrique II da Inglaterra e Frederico Barba-Roxa, da Alemanha, mas também reis piedosos e fiéis ao Papa, como Luís VII, da França.
- De resto, a Inquisição foi praticada pela autoridade civil mesmo antes de estar regulamentada por disposições eclesiásticas. Muitas vezes o poder civil se sobrepôs ao eclesiástico na procura de seus adversários políticos.
- Por fim, na cidade de Genebra na Suíça, o grande reformador protestante Calvino, instituiu um tribunal religioso que condenou à morte, um bom número de adversários. Entre eles, o famoso médico espanhol Miguel de Servert, em 1553.
Ao analisarmos o que foi a Inquisição, torna-se imperativo o fazê-lo levando em conta os costumes e o modo de pensar da época. Não se pode julgá-la segundo a mentalidade do mundo presente sem levarmos em conta o contexto histórico em que ocorreu.
Por outro lado, é interessante observarmos que aqueles que se apressam em condenar a Igreja por erros cometidos em função da natureza humana que está presente em seu Corpo , não se mostrem tão ardorosos na defesa da vida gravemente ameaçada nos dias atuais com práticas como o aborto que está sendo legalizado em diversos países. Na luta pela partilha fraterna do pão num mundo em que apesar do aumento da produção de alimentos, 11% da humanidade sofre com a subnutrição.
Defendem o controle de natalidade a qualquer custo e acusam a Igreja de irresponsável por defender a paternidade responsável, num mundo em que a principal causa da crise ambiental e econômica é a forte concentração de renda nas mãos de um pequeno grupo de nações que, apesar de conterem apenas 18% da população mundial, concentram 67% da produção mundial de alimentos.
Por que tais grupos não se colocam ao lado da Igreja (hoje tão perseguida) pela defesa do direito à vida?
(por Professor Carlos Henrique Magalhães Costa)
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