Sal da Terra
Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo de Niterói (RJ)
Arcebispo de Niterói (RJ)
Numa montanha, verde como tudo era verde na Galileia do tempo de Jesus, com os homens colhendo espigas e as mulheres, a uva, ao longe, Jesus se sentou no meio dos doze, no meio do povo, e pronunciou as Bem-aventuranças. Bem-aventurados todos aqueles que o ouviram naquele dia! Bem-aventurados todos os que não o ouviram, mas ouvem-no ainda hoje!
Naquele dia, ele disse que seríamos o sal da Terra. O sal é o que dá gosto, o que purifica, conserva, renova, cura e mantém. Tudo junto, no mesmo elemento e na mesma figura do sal. Acolher o chamado de Deus é ser sal da Terra. No dia em que você nasceu, foi pra isso que foi chamado, foi esse o primeiro chamado da sua vida nem bem começada. Antigamente, no rito do Batismo, o padre colocava uma pitada de sal na boca da criança. Era para ela experimentar, desde aquele dia, o que havia sido chamada a ser. Se as coisas mudaram, é hora de refazer o rumo.
Lembro-me de ter visto, certa vez, de onde estava, uma senhora idosa, à distância. Há horas ela estava lá. Saí e voltei, e ela continuou lá, sentada na varanda, no mesmo lugar, sem se dirigir a nada, apenas lá, onde a colocaram para que ficasse e, decerto, não incomodasse ninguém.
Não vi ninguém se dirigir a ela. Ninguém foi lhe perguntar se queria ou precisava de algo. Talvez ninguém tenha se dado conta dela ter ficado lá, perdida no vazio. Por sua idade avançada e pela sua incapacitante dependência, talvez, ela não fosse mais ninguém. Como e por que alguém iria se incomodar com quem não é ninguém?
Esse parece ser o retrato de uma época. É o retrato de uma vida perdida. Não parece ser esse também o retrato da nossa época?
Enquanto retrato, esse é também um paradoxo. Nunca época alguma esteve tão atenta ao valor pessoal de cada indivíduo. Nunca se salientou tanto o “seja você mesmo”. Nunca fomos tão sujeitos, como agora somos. Nunca nos levaram tanto em conta como hoje, quando são interpretados cada minúsculo ato e menor aspiração que temos. As manifestações populares legítimas mostraram isso. Ao mesmo tempo, nunca valemos tão pouco, tão baixo, como o preço de um tênis que o assaltante rouba, enquanto expolia a vítima, também da carteira, também da vida.
Cadê o sal? Com quê salgaremos? Fomos chamados a ser sal da Terra. Será que ele perdeu o sabor? Se perder o sabor “não serve para mais nada, apenas para ser jogado fora e pisado pelos homens” (Mateus 5, 13). O retrato-paradoxo de nossa época cabe bem na moldura do descartável e do funcional. Antes que nos tornemos descartáveis por termos deixado de ser funcionais, antes de cairmos nas patologias do vazio, quem sabe voltemos às fontes para lembrar nossa vocação primeira: a de ser sal da Terra.
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