O rumo da paz
Não há sociedade sem espiritualidade
Quinta-Feira, 03 Janeiro 2013
O diálogo inter-religioso tem sido um caminho de encontro e partilha que a Igreja Católica e as outras religiões têm percorrido nos últimos anos no sentido de celebrarem o que de comum os une e compreenderem o que os afasta, num espírito de tolerância e compreensão como não há memória de alguma vez ter havido. Por isso, importa ouvir de que forma as outras religiões veem a construção da Paz e de uma sociedade mais justa.
Silêncio, renovação, oração, mudança de mentalidade, bem comum. Apesar das grandes diferenças teológicas entre o Islão, o Judaísmo, o Budismo e o Cristianismo, existem muitos pontos de união no que diz respeito à construção da sociedade do futuro. Desde logo, o sentimento de tristeza pelo facto de as religiões e da espiritualidade estarem a ser afastadas na sociedade dos dias de hoje. «Nós temos consciência que este sistema atual procura afastar qualquer espiritualidade, porque o facto é que se as pessoas vivessem de acordo com a sua ética de pressupostos espirituais, ou altruístas, naturalmente não alimentariam este sistema», considera Paulo Borges, professor da Faculdade de Letras e líder da União Budista de Portugal, organização que é a voz do movimento budista no nosso país. Esther Mucznik, responsável da comunidade judaica, complementa a ideia com a noção de que «hoje, as pessoas religiosas não existem para a sociedade ou para os media», e o Xeque David Munir, da comunidade islâmica, diz que «a sociedade está a perder os seus valores espirituais, e é por isso que estamos em crise constante».
A responsável da comunidade judaica afirma que é tempo das pessoas perceberem que assim não dá. «Uma visão económica ou política que não ponha o ser humano em primeiro lugar, é destinada a causar a conflitualidade e isso é muito mau. O momento que vivemos é prova disso», defende a judia.
A saída para a sociedade e a construção da Paz acabam por estar, desta forma, intimamente ligados. É que da forma como as coisas estão, estes não são tempo de paz. «O nosso país não está em guerra, mas também não está em paz», alerta o Xeque David Munir. O que é preciso então, para se alcançar a paz? Todas as religiões falam no mesmo: a paz tem de vir de dentro do indivíduo, e partir daí para a sociedade. «Quando assumimos aquilo que somos dentro de nós, no nosso caso o judaísmo, conseguimos ter a paz dentro de nós, e é daí que partimos para levar a paz às outras pessoas. O judaísmo é um guia para a ação, é uma religião de vida», explica Esther Mucznik.
Paz interior
O islamismo não é muito diferente. «Nós preferimos olhar para uma paz interior, antes de olharmos para o exterior. O Islão sempre contribuiu para a paz, até porque o próprio significado da palavra Islão é Paz, e a nossa saudação Salaam Aleikum, significa "A paz esteja consigo". Para nós, toda a hora é sinal de paz, de transmitir essa paz ao outro», defende o Xeque.
No budismo a procura da paz interior é também uma prioridade. «Como diz o Dalai Lama, a paz exterior só pode existir se cultivarmos a paz interior nos nossos corações. Obtida esta paz interior, é importante para nós budistas não ficarmos só nós a fruir dessa paz, mas partilharmos essa paz social e comunitariamente», diz o responsável do movimento budista em Portugal.
O Xeque Munir aponta falhas graves no processo educativo que explicam o estado em que estamos, e dá um pequeno exemplo. «Se o pai em casa disser ao filho que diga a quem está a telefonar que ele não está em casa, o filho vai aprender a mentir. É uma coisa pequena, é certo, mas ele começa a aprender e depois começa a fazer ele o mesmo, e isto vai aumentando», conta. E é por isso que os nossos entrevistados falam na necessidade de uma mudança. «Precisamos de uma revolução, que começa dentro da própria pessoa, antes de vir para a sociedade», diz o responsável islâmico, enquanto Paulo Borges defende um «salto quântico da consciência, para optar por novos valores», e Esther Mucznik defende a necessidade de «contrariarmos o que vemos de errado e sermos coerentes com o que acreditamos».
Ser exemplo
Nesta mudança as pessoas com valores espirituais podem fazer a diferença, desde que saibam ser exemplo. «Continuamos hoje a precisar de profetas que, na prática da sua vida, professem aquilo em que acreditam», argumenta a responsável judia, ao que o Xeque David Munir complementa, apontando o dedo a todos os responsáveis religiosos, de todas as religiões. «O que falta é que os religiosos sejam exemplo. Se não forem exemplares, não vale a pena falarem. Há um versículo no Corão que diz "porque é que você diz aquilo que não faz?"», defende o religioso islâmico, que acrescenta que «se as pessoas com pendor espiritual forem exemplares, sem dúvida que têm um papel importante a desempenhar. Agora muitas vezes acontece que ouvimos falar de pessoas muito ligadas à espiritualidade que são arrogantes, e é importante lutar contra o nosso ego», defende.
Bento XVI dedicou no ano passado a mensagem do Dia Mundial das Comunicações Sociais ao silêncio, e os três responsáveis religiosos apontaram caminhos semelhantes na sua religião. «A prática budista defende que, em situação de conflito, a ideia é ouvir o que o outro tem para dizer, deixar que isso ecoe no nosso coração, e só depois dizermos o que sentimos», diz Paulo Borges. Esther Mucznik fala na «importância da oração» e do «diálogo», e o Xeque David Munir exemplifica com o exemplo do jejum islâmico. «Nós, muçulmanos, fazemos o jejum. Mas de nada adianta ao muçulmano jejuar se a única coisa que ele fizer for não comer e não beber. A língua também está de jejum, o olhar também está de jejum, os ouvidos estão em jejum, e temos de valorizar o que temos, pois sentimos um pouco na pele o que o outro não tem. Falamos de pobreza, de fome e de miséria, e quem não come durante muitas horas valoriza, porque há outros que não comem e não bebem porque não têm», explica o Xeque.
A importância do diálogo
Uma questão importante a saber seria o papel que as religiões unidas neste aspeto poderiam ter. «Se todas as religiões falassem em conjunto sobre os valores espirituais, e sobre o apoiar o próximo, sem dúvida que as pessoas que recebem essa mensagem iriam estar satisfeitas e saber que poderiam contar com o apoio das outras religiões. Era até uma mensagem muito mais credível, porque contava com as religiões a falarem a uma só voz, o que quebrava imensos tabus», diz David Munir, ao que Paulo Borges complementa. «As religiões e os líderes carismáticos têm um papel fundamental, porque são responsáveis por fazer opinião, pelo menos dentro das suas nações e comunidades, e podem dar um exemplo muito importante ao convocar os fiéis das diferentes religiões a convergirem naquilo que nos une e não tanto naquilo que nos separa, para pensarmos em conjunto um mundo melhor para todos».
Esther Mucznik concorda que o diálogo é «importante», mas também afirma que é preciso mais ações da parte dos crentes, e aponta uma medida prática que poderia ajudar a nivelar as desigualdades e, assim, contribuir para a construção da paz. «Todas as religiões tem no seu seio pessoas com mais ou menos poder de compra. As religiões podem procurar incentivar as pessoas com mais meios de devolver uma parte daquilo que a sociedade lhes deu para a sociedade, que é uma coisa que não existe muito em Portugal, existe mais por exemplo nos EUA. As grandes fortunas, se fossem mais responsáveis do ponto de vista social, e as religiões, todas, incentivam isso, poderiam ter um efeito benéfico», considera a responsável judaica.
E assim se constrói um mundo melhor, uma sociedade cheia de paz. Seria bom que, em todo o mundo, as religiões se unissem com este fim, mas tendo de começar em algum lado, porque não dar o exemplo aqui mesmo da importância de ter o nosso futuro regido por valores espirituais? A mudança começa, como puderam ler, dentro de cada um de nós...
Ricardo Perna
Publicado em Igreja
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