Blog Alma Missionária

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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013


O Verdadeiro Amor Cristão

A sublimidade do amor

Autor: Manoel Luiz Prates Guimarães
Publicação original: Outubro de 2009
O amor é a maior verdade cristã e o maior e mais profundo mandamento de Jesus. É o próprio Jesus quem o diz: “Ele respondeu: ‘Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento!’. Esse é o maior e primeiro mandamento. Ora, o segundo lhe é semelhante: ‘Amarás teu próximo como a ti mesmo’. Toda a Lei e os Profetas dependem desses dois mandamentos” (Mt 22,37-40). Com efeito, São Paulo magnificamente sintetiza: “Não fiqueis devendo nada a ninguém... a não ser o amor que deveis uns aos outros, pois quem ama cumpre plenamente a Lei” (Rm 13,8). Jesus ainda conclui, em seu discurso de despedida, no Evangelho segundo São João, dando um novo e definitivo mandamento: “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13,34); “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15,12) [1] .
Essa é uma grande verdade e um grande mistério, ao mesmo tempo que é evidente aos nossos olhos; uma verdade comovente e profunda. Houvesse plenamente amor, não haveria guerras, não haveria campos de batalha. Houvesse amor, não haveria fome, mas os mais abonados saberiam dividir, ensinar e incentivar os mais pobres, de modo que a pobreza seria erradicada. Houvesse verdadeiramente amor, não haveria mágoas, nem disputas, nem tristeza. Iluminados e conduzidos pelo Espírito Santo, é o amor o tudo que devemos buscar compreender e, acima de tudo, ser e viver. “Sobretudo, revesti-vos do amor, que une a todos na perfeição” (Col 3,14).
O amor nos une na perfeição. Que grande verdade! Que grande maravilha! O amor nos leva à perfeição. Ainda que se tenha todos os dons, sem o maior deles que é o amor, tudo é vão [2]. Se quem ama verdadeiramente cumpre toda a Lei, como nos disse São Paulo na Epístola aos Romanos, conforme já citado, amando verdadeiramente não se cai no pecado. É o amor quem faz vencer o pecado e alcançar a verdadeira proximidade e familiaridade de Deus. Cultivando o amor, evita-se o pecado. Jesus também o disse: “Mas o que sai da boca vem do coração, e isso é que torna impuro. É do coração que saem as más intenções: homicídios, adultérios, imoralidade sexual, roubos, falsos testemunhos e calúnias. Isso é que torna alguém impuro. Mas comer sem lavar as mãos não torna ninguém impuro” (Mt 15,18-20). É do coração que vem todo o mal. Cultivar o puro amor no coração é a melhor maneira de combater o pecado.
O amor é o maior mandamento, a maior lição de Jesus e Seu maior testemunho. Sua vida foi o verdadeiro amor. Infelizmente, a deturpação desse amor é uma das mais insidiosas mentiras pregadas na nossa sociedade e reverberadas mesmo no seio do cristianismo e da Santa Igreja Católica. Com efeito, “amor” é uma das palavras mais ditas, ouvidas, escritas e lidas do nosso tempo e a fé cristã foi quem disseminou seu conceito, sendo sua grande base. O amor de Deus, a realidade de que somos profundamente amados por Deus, é, talvez, a primeira e maior verdade de fé. De outro lado, como vimos, Jesus resumiu toda a Lei, todos os mandamentos em dois básicos: amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a si mesmo [3]. A Tradição cristã seguiu essa verdade, desenvolvida pelo Magistério. Já a primeira Carta Encíclica do Papa Bento XVI, aquela pela qual quis orientar seu pontificado foi “Deus caritas est” – “Deus é amor” [4].

O Sentido que hoje se dá à palavra “amor”.

O mundo contemporâneo, porém, distorceu por inteiro o sentido da palavra amor, dissociando-a em muito do seu sentido cristão original [5]. O “amor”, como conceituado e disseminado no nosso tempo, é mero sentimentalismo. É a mera “sensação gostosa” de estar com quem se gosta. Amar virou uma sensação boa, um prazer. Por isso mesmo, porque o que vale é o amor, o “sentimento de amor”, é importante, na mentalidade atual, a sinceridade. E como corolário dessa sinceridade têm-se que, se eu gosto daquela pessoa, se a amo, devo ficar com ela, relacionar-me com ela. Se não a amo, devo ser sincero e viver longe dela, sem a prejudicar, talvez, mas devo “seguir meu coração”, afinal, o que importa, segundo o próprio Jesus, é o que vem do coração.
Justamente porque o que vale é o amor, na realidade a nossa volta, não faz sentido uma união conjugal indissolúvel, pois, se o amor passar, o melhor é dissolver a união. Por isso mesmo, em nome do amor, por contraditório que seja, instituiu-se o divórcio. Por que continuar-se junto, se o amor acabou? Por que viver uma mentira? Por que manter uma união se o coração já não sente mais o que antes sentia (ou talvez nunca tenha sentido) e o que importa é o que vem do coração? É melhor separar-se, responde o mundo atual. O melhor é se separar! Sem dúvida! Depois, surgirá outra pessoa, que se poderá amar novamente. Esse “amor” está firmado unicamente em sentimentalismo utilitarista, descomprometido com o outro, por vezes egoísta, como se o amor fosse um sentimento que vai e vem ou como se “a perda do amor” não fosse um fato grave, sintoma de um estado de alma e de vida seriamente deteriorados. Não se preocupa com o outro, com os seus sentimentos, apenas se está com ele enquanto dá prazer. Evidentemente, nada disso tem a ver com o verdadeiro amor cristão.
Essa é uma das razões por que nossa sociedade é hoje tão obstinada em não se ter filhos. As uniões acontecem sob o signo da incerteza, da provisoriedade, sem um compromisso real. Um filho, sabe-se, requer cuidados, doação, e o melhor é que o casal prossiga junto para dividir o sustento, a educação, a dedicação de tempo para brincar, ajudar a formar a personalidade, ensinar, cuidar na doença, trocar as fraldas, dar banho, consolar no choro da madrugada. Para a mentalidade atual, porém, fazer essas coisas não é amar. Isso é trabalho, renúncia, uma coisa aparentemente intrinsecamente má aos olhos da nossa sociedade. Então, não se têm filhos. Mesmo o aborto é melhor, aos olhos do mundo atual, do que se ter um filho. Prefere-se matar uma criança inocente sob o pretexto de que se trata, dirão alguns, de amor, porque é melhor abortar do que permitir uma vida de sofrimentos. Sim, o amor do mundo é homicida, porque o amor pregado na nossa sociedade não é amor, mas sentimentalismo que se rende facilmente à conveniência, usando o próprio sentimento para justificar qualquer coisa, mesmo as atrocidades que cometa. A mãe se arvora na condição de julgar se o filho no ventre deve viver ou morrer pela sua própria conveniência, pela vergonha que irá sentir ou não, ou pelo custo ou trabalho que terá, e chama essa decisão homicida de amor. Eis o amor do nosso tempo, o amor de que se fala tanto!
Em nome do amor, passou-se a admitir uniões livres e sucessivas, sem qualquer preocupação com fidelidade, com companheirismo, constância, coragem e fortaleza para se superar as dificuldades, sem qualquer preocupação com o amor verdadeiro. Se se deixa de amar, é melhor separar e juntar-se com outra pessoa. Não há espaço, parece, para o esforço, para a compreensão do outro e a aceitação de que somos diferentes e, porque diferentes, com desejos diferentes, tendo necessariamente que um ceder em favor do outro, com alguma freqüência. Já mesmo neste momento inicial da exposição, em que ainda não estamos apreciando ainda o verdadeiro sentido do amor cristão já se pode questionar: pode-se chamar a isso de amor?
Duas pessoas “se juntam”, fazem sexo, vivem juntos por um tempo, mas, logo após, já não há mais a novidade daquela relação, então se separa. Quando a vida em comum começa a fazer exigências, quando se tem que respeitar as diferenças do outro, suas preferências pessoais diversas das próprias, seus hábitos diferentes, quando se tem que renunciar a algo de que se goste para edificar uma vida em comum, então se termina a relação. Uma relação a dois que exija renúncias, sacrifícios, não vale à pena. A conclusão é que nenhuma relação a dois vale a pena, uma vez que é impossível que os dois concordem absolutamente em tudo em relação a tudo e nunca precisem um do trabalho e da renúncia do outro. Inevitavelmente ocorrerá de um ficar doente e o outro ter que cuidá-lo, de ter que trabalhar e outro querer sair, de um preferir ao futebol e outro na apresentação de balé. Isso, porém, é visto como chato. Se a relação exige isso, é melhor desfazê-la. Muito bem, nessa situação, é possível se questionar sinceramente que em algum momento tenha havido amor? Certamente não! Pode ter havido atração, desejo, aventura, entusiasmo, gozo pela presença do outro... amor nunca houve aí. Mas a mentalidade em que nos inserimos entende que houve amor simplesmente porque, em algum momento, houve o sentimento de gozo pela proximidade, a emoção de estar junto, ou algo similar.
O amor conceituado por nossa sociedade, quando se dirige ao imaterial, assemelha-se muito à aventura. Amar a vida é ser irresponsável com ela, fazer “o que der na telha”, é “ser livre”, numa liberdade que significa poder “curtir”, extrair o máximo de prazer em cada momento, numa busca individualista, egoísta e hedonista. O bom de amar é passar bons momentos juntos, ir a belos lugares, descansar, ter momentos de prazer, com esportes, viagens, idas à praia, belos locais, e assim por diante. E isso o mundo atual chama de amor. É o amor sentimentalista. Esse amor nada tem a ver com o amor cristão. Logo, o amor que o essa mentalidade quer, meramente sentimentalista, não é em nada capaz de conceder a felicidade, nem de evitar as guerras, a fome, a exploração e toda espécie de mal, ao contrário, fomenta-os porque é individualista e egoísta, preocupa-se unicamente com o próprio bem e nunca com o outro.

O verdadeiro amor Cristão

O amor cristão é completamente diferente. O amor cristão é o amor de Cristo. Há de se ler o Evangelho com um pouco mais de amplitude. “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15,12). Sim, mas vamos ao versículo seguinte: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). Não há como compreender o amor cristão segregando-se o primeiro versículo do segundo. O amor verdadeiro é o que se doa, que se entrega, que se sacrifica, que perde e renuncia a seus bens, e por vezes ao seu bem mesmo, pelo bem do outro, até a vida. A mãe amará seu filho. Não o matará. Perderá noites de sono dando de mamar, consolando nas cólicas do bebê, trocando as fraldas, mais tarde gastando meia hora fazendo o filho arrumar seu quarto, que ela mesma arrumaria em cinco minutos, para o ensinar, conversando sobre sua vida, seus conflitos, suas dificuldades, dando sua vida, enfim, pelo seu filho. O cônjuge amará seu companheiro, e ficará com ele, cuidando-o em sua doença, mesmo que dure anos [6]. Então o amigo deixará de ir ao futebol para ajudar o amigo no estudo. Então o irmão olhará sempre antes para seu irmão antes de olhar para si.
O amor cristão vai muito além, porque ama incondicional e plenamente mesmo seus inimigos. Jesus mesmo diz: “Ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo!’ Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem! Assim vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus...” (Mt 5,43-45a). O próprio trecho antes comentado, do Evangelho de São João, se bem interpretado, leva ao amor radical pelos inimigos. O Padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia, já explicou que os “amigos” em “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos”, não são aqueles que amam ao autor da frase, mas aqueles que são amados por ele [7]. Ou seja, devemos amar a todos, sendo “amigos” de todos, e, portanto, dar nossa vida, por qualquer um que precise, gostando ele de nós ou não, sendo meu amigo ou não. Não importa! Mesmo que me tenha por inimigo, eu o amo, sou seu amigo e estou disposto a me sacrificar por ele. Esse cristianismo, esse amor o nosso tempo não compreende, não admite e não está disposto a viver.
Se o “amor” que o nosso tempo define não suporta sequer o sacrifício por quem diz amar, muito menos fará qualquer coisa por quem não ama, de forma alguma se sacrificará por ele. O “amor” de que tanto se fala em nosso tempo não é capaz em nada de evitar a guerra ou a fome, porque é, em si mesmo, completamente individualista, egoísta e hedonista. Só olha para o seu bem. Importa-se muito pouco com o outro. O amor cristão, sim, tem boas chances contra aqueles males.
O amor cristão é, como visto, o amor do próprio Jesus Cristo, o amor com que Ele amou a humanidade. Não só na Sua Paixão, mas em toda a Sua vida se pode ver esse amor. Note-se que muitos pensadores e críticos, formadores de opinião em geral, ao falarem do amor, acusam a Igreja de distorcer as palavras ou as intenções de Cristo. Ele teria, sim, amado. A Igreja não saberia amar, apenas imporia regras. Essa acusação é completamente descabida. A Igreja teria, segundo tais pessoas, traído a mensagem de Jesus porque imporia muitas regras, não sabendo amar. A verdade, porém, é que Jesus amou infinitamente, e justamente por isso soube apontar o erro, para o bem da própria pessoa. E, se a pessoa opta por não aderir a suas exigências, Jesus deixa claro que dessa forma não é possível o seguimento a Ele.
Se é verdade que Jesus acolheu todo e qualquer pecador que O quisesse acompanhar, que não teve medo de estar entre os pecadores públicos, de os receber entre seus discípulos, não é menos verdade que a todos fez as exigências morais e espirituais inerentes ao amor e ao seguimento do Mestre. Zaqueu espontaneamente, ao acolher Jesus e a Ele aderir, decidiu doar metade dos bens aos pobres e restituir o quádruplo a quem fraudara (Lc 19,8); à mulher adúltera, a quem Jesus impediu que apedrejassem, determinou que não voltasse a pecar, sem prever qualquer exceção à exigência (Jo 8,11); ao jovem rico não escondeu a exigência de doar aos pobres, mesmo com isso perdendo o possível discípulo (Lc 18,22-24); no discurso do “Pão da vida”, que escandalizou e levou ao abandono de muitos ouvintes e discípulos, não apenas não voltou atrás em uma vírgula, como ainda se voltou aos Apóstolos, e perguntou se também eles não queriam ir embora (Jo 6,66-67); a Nicodemos, com objeções de índole racionalista, não voltou atrás na necessidade de “nascer de novo”, e, questionado como poderia nascer de novo um velho, reentrando no ventre materno, Jesus se limitou a responder que se não renascesse, não entraria no Reino dos Céus (Jo 3,4-5); à samaritana, no poço de Jacó, não negou que seu então companheiro não era seu marido (Jo 4,17-18); a um discípulo anônimo, não permitiu que enterrasse primeiramente os mortos, mas propôs o seguimento imediato (Mt 8,22); quando os fariseus perguntaram acerca do divórcio, Jesus negou a possibilidade, mesmo que se tenha dito que, diante de tal doutrina, era melhor não se casar (alguma semelhança com o mundo atual? – Mt 19,9-10), e, quando invocaram a lei de Moisés para justificar o divórcio, Jesus ainda esclarece que tal se havia dado pela dureza do coração daquele povo (Mt 19,8). Enfim, a ninguém Jesus ofereceu um amor sem exigências, não como condicionantes ao amar, mas como frutos do próprio amor, para o bem dos amados. A ninguém ofereceu um amor meramente como sentimento ou “calor no coração”, mas um amor de atitude, de entrega, de partilha, de verdade, de sacrifício, até o sacrifício máximo da Cruz e Ressurreição.
Assim também a Igreja, ao apresentar Jesus, deve ser fiel a Ele e não pode deturpar Sua Palavra. Sim, Jesus teve por maior mandamento o amor, determinando que se amasse até o inimigo. Mais, não apenas pregou, mas testemunhou tal amor e o viveu na radicalidade até a morte de cruz. Todavia, esse amor nunca foi de facilidades como quer nossa sociedade. Sua Palavra e Sua vida o atestam, como já visto.

Dimensões moral e espiritual

Mesmo quando não se reduz a mera conveniência egoísta, individualista e hedonista, como vimos até aqui, o amor, como é comumente definido a nossa volta, parte do desprezo por inteiro do aspecto espiritual do ser humano e da realidade espiritual mesma, mantendo-se verdadeiramente distorcido. De outro lado, ignoram nossa sociedade e seus formadores de opinião, a questão da verdade e da moralidade dos atos. Em nome do amor, deixou-se de lado a verdade, o cuidado com a moral, com o bem e o mal [8]. Em nome do amor, esqueceu-se de perquirir da moralidade do objeto das ações humanas, centrando-se unicamente em suas intenções, como se uma intenção pretensamente boa pudesse tornar um ato, de mau em si mesmo, em bom [9].
Assim, o mundo atual [10] não compreende por que a masturbação é má. Com efeito, vê egoística, individualista e hedonisticamente o ser humano, vê que está extraindo prazer e, não estando a ofender a mais ninguém, não entende nossa sociedade como pode ser má. Não vê que justamente por ser ato egoísta, que busca apenas o próprio prazer fechado em si mesmo, tendo os outros meramente como objeto (a maioria das fantasias que a acompanham são assim, inclusive). Ignorando Deus e as realidades espirituais, o ser humano não consegue ver em que a masturbação prejudica o outro e passa a vê-la como moralmente neutra ou mesmo boa. Sim, a nossa volta, tem-se por critério de moralidade, não o que é bom ou mau aos olhos de Deus, mas o que é bom ou mau aos olhos do homem, tendo como critério seu bem-estar e ignorando a realidade também espiritual do homem, sua alma e as necessidades reais dela [11].
O mesmo vale para todos os atos de culto e a vivência espiritual. Nosso tempo, menosprezando as realidades espirituais, ainda que diga nelas crer, desvaloriza a vida espiritual, prega que para tudo se precisa tempo, profissão, academia, lazer, cultivo de amigos, cuidados com o corpo e saúde, formação intelectual, mas para oração não é preciso dedicar tempo. E para oração não se precisa de ato público de culto [12]. A Deus se presta culto em cinco minutos diários, quando muito, sozinho em casa, diz nossa sociedade atual. Não há necessidade de se participar do Santo Sacrifício, por exemplo. A confissão também é, nessa visão, desvalorizada, pois bastaria uma confissão “direta” a Deus, sozinho, não através de um Sacerdote, tão ou mais pecador que eu. É o que diz mundo.
O homicídio, o roubo, o estupro, atentados contra o homem, são admitidos como pecado, enquanto idolatria, promiscuidade (quando não-violenta), atentados contra a união conjugal, os Sacramentos, são menosprezados [13]. Essa falta de ciência da existência das realidades espirituais e a não-admissão de uma moral universal e imutável são elementos constituintes do conceito mundano de amor. O amor “não-cristão”, o mais das vezes, é frívolo, utilitarista, individualista, egoísta e hedonista, justamente porque parte de uma visão materialista prática e moralmente relativista da realidade. Se não existe uma realidade espiritual, ou ela é desimportante, se o ser humano não tem alma, ou ela não possui exigências concretas, e se não existe um bem moral objetivamente apreciável, constante, universal e imutável, uma verdade, um certo oposto ao errado, universais e imutáveis, a única maneira de se ver o amor é como o nosso tempo efetivamente o vê, de forma sentimentalista.
Se se ignoram as realidades espirituais, ignora-se o inferno, não há noção de eternidade e se age como se não houvesse a possibilidade de uma alma pecadora receber a paga do mal que fez com a condenação ao castigo eterno. Logo, ao se amar, não é preciso que se tenha qualquer cuidado para que o amado não incorra nesse castigo eterno. Por conseguinte, é um amor sem correção e sem necessidade de um esforço moral real. De outro lado, se o amor não tem implicações morais concretamente exigíveis, se não existe uma moral universal e imutável, ainda que se acredite, em tese, em um inferno, não há nenhum ato objetivo que, cometido, possa levar alguém a ele. Só se cairia em tal maldição se se agisse com má intenção. Como ninguém age com má intenção – é o pensamento do nosso tempo – ninguém quer fazer nada de mal nunca (embora se tenha vários atos objetivamente moralmente maus), não há o risco de uma condenação eterna. Segundo o nosso tempo, a pessoa cometeu o aborto, mas é porque era para a criança não sofrer depois. Cometeu o adultério, mas não teve a intenção, foi um momento de fraqueza. Sonegou o imposto, mas não queria prejudicar ninguém, é que entende injusto o tributo. Apropriou-se do dinheiro alheio, mas não queria prejudicar ninguém, é que o outro tem muito e a pessoa estava precisando. Boas intenções se encontram para os mais hediondos atos, homicídios, roubos, até crimes sexuais (ou não se sabe que pedófilos comumente alegam terem sido “seduzidos” pelas vítimas). O exemplo mais evidente no nosso meio é mesmo o aborto.
A verdade não é essa. A realidade é que, quanto à moral, existe uma verdade, um bem e mal, certo e errado, universais e imutáveis, que não dependem da compreensão humana, nem da sua concordância [14]. Não cabe ao ser humano decidir o que é bom e mau; cabe-lhe perquirir sua consciência e lá encontrar a Lei Natural [15]. Cabe-lhe decidir, sim, como agirá, sabendo que, fazendo o certo ou o errado, escolhendo o bem ou o mal, as conseqüências advirão, importando bem menos a intenção (que se presta, com freqüência, a ser usada como justificativa falsa, desculpa) do que o objeto mesmo da conduta [16].
De outro lado, em relação às realidades espirituais, elas existem, sendo Deus mesmo a maior delas, mas também a alma humana, com necessidades concretas. Inferno existe, bem como paraíso, purgatório, juízo particular e juízo final. Fortalecem a alma a oração, jejuns, mortificações. Enfraquece-a o pecado, que a vai afastando de Deus, acostumando-a ao próprio mal, prendendo-a, viciando-a. Quanto mais se comete pecado, menos resistente fica a alma a cometer outros, menos é capaz mesmo de distinguir entre bem e mal. Tudo isso e muito mais, atestado pela sabedoria da doutrina católica, é ignorado pela nossa sociedade [17].
Não tendo por base as realidades espirituais e a verdade moral, para o pensamento atual, tudo é permitido, nada pode ser proibido, salvo se atentar materialmente contra o homem. Nesse contexto, não há como não ser o “amor” uma expressão dessa visão, expressão, como já dito, utilitarista, frívola, hedonista, egoísta e individualista. Nesse contexto, o amor será sempre algo transitório, que mudará conforme o sentimento; será sempre algo frágil, diante de qualquer dificuldade, fenecerá. Destituído de bases espirituais e morais, o amor é mesmo só o “calor no coração”, a emoção, a sensação de gostoso que se tem, por exemplo, quando se está com quem se gosta. Não que o sentimento não seja importante [18], mas reduzir-se o amor a isso é de uma pobreza indizível.

O erro dentro da Igreja

Feitas as considerações supra, distinguindo-se o que é realmente o amor cristão e o que é o amor para o mundo atual, e identificando-se os erros do materialismo prático (ignorância ou menosprezo da realidade espiritual) e do relativismo moral (ignorância ou rejeição da existência de uma moral, uma verdade universal e imutável), constituintes da visão errada de amor “não-cristão”, é fundamental que se tenha em mente que esse erro também aparece com freqüência dentro da Igreja, fruto da má formação doutrinária.
Com efeito, pregadores, mesmo clérigos, alguns inclusive com projeção na mídia, incorrem nesse insidioso erro. Esse é um dos mais insidiosos erros que se podem infiltrar no seio da Igreja, dado que subverte, contamina e deturpa o que de mais profundo e belo existe no cristianismo. Com efeito, realmente, o amor cristão é o maior centro de nossa fé e a verdade de onde tudo parte. Nada faz sentido se não houver amor. Do amor é que partem as exigências, repita-se, não como condicionantes para o amar, mas como frutos do próprio amor. Tendo-se em vista as realidades moral e espiritual, porque se ama e se quer o melhor para o outro, esforça-se para que não caia no erro, para que não seja enganado, para que não corra o risco de ganhar o mundo inteiro e vir a perder a vida eterna. A insídia do amor sentimentalista do nosso tempo e de sua pregação é exatamente pegar o que o cristianismo possui de mais precioso e o deturpar, retirando-lhe justamente aquele conteúdo pelo qual ele é bom, pelo qual é tão precioso, mantendo-se o seu nome com o objetivo de enganar as pessoas, sugerindo-lhes que o que é bom, belo e salvífico é o nome e não o conteúdo [19].
Quando a Igreja condena o divórcio, as uniões livres, as uniões homossexuais, a masturbação nunca está condenando as pessoas que estão nessas situações, mas os atos. Não condena a pessoa que se divorciou, mas o divórcio, não a pessoa em união livre ou homossexual, ou que se masturba, mas os atos do divórcio, da união concubinária fora do Matrimônio, da masturbação. E a Igreja só os condena porque, obediente a seu fundador, ama a todos e a todos quer levar à verdade, para todos quer o melhor, entendendo que a felicidade só ocorre realmente se é no bem moral e na verdade. Por amor, adverte das conseqüências dos atos maus. A Salvação de todos, prega a Igreja, já foi dada por Jesus Cristo. As pessoas condenadas, são-no por seus próprios atos, não pela advertência da Igreja.
A advertência da Igreja é a mesma do Eclesiástico: “Desde o princípio Deus criou o ser humano e o entregou às mãos do seu arbítrio, e o deixou em poder de sua concupiscência. Acrescentou-lhes seus mandamentos e preceitos e a inteligência, para fazer o que lhe é agradável. Se quiseres observar os mandamentos, eles te guardarão; se confias em Deus, tu também viverás. Diante de ti, ele colocou o fogo e a água; para o que quiseres, tu podes estender a mão. Diante do ser humano estão a vida e a morte, o bem e o mal, ele receberá aquilo que preferir” (Eclo 15,14-18).
Da mesma forma, a Igreja condena o aborto, o homicídio, o estupro, o sequestro, o roubo, o furto, o estelionato, o peculato, a difamação, a injúria, nunca as pessoas que as cometem. A Igreja quer a Salvação das pessoas, não sua condenação. Sua Salvação, porém, passa pela obediência à verdade estabelecida por Deus. Por isso, procura admoestar sempre.
Infelizmente, dentro da Igreja, por vezes em ministros consagrados ou ordenados por ela, vê-se o erro. Diz-se que a masturbação é um processo natural da adolescência e pode ser praticado livremente. O divórcio é a melhor solução quando o casamento é difícil. Uma união livre ou homossexual não é má se houver amor. Amor, aqui, evidentemente no sentido que nossa sociedade secular dá ao termo.
Lamentavelmente, dentro da Igreja mesmo se vê o erro pelo qual a verdade seria obtida unicamente a partir do diálogo, do qual a Igreja mesmo deveria participar e dar algumas opiniões, como outras religiões, entidades e pessoas, chegando-se assim à verdade, como se a verdade não sido pregada por Jesus Cristo e transmitida à Igreja para que a guardasse e retransmitisse, mas fosse fruto do consenso ou de mútuas concessões de pessoas e grupos diversos. Dá-se guarida ao pensamento equivocado pelo qual a Igreja deveria “evoluir”, como se a própria moral não fosse imutável, estabelecida por Deus desde sempre, mas decorresse do consenso humano, com ele “evoluindo”. Uma Igreja assim não teria dogmas, nem proclamaria uma verdade, mas conversaria com toda a sociedade para chegar à verdade, ao bem. Não é preciso dizer o quanto o nossa sociedade relativista se agrada de quem prega assim. A mídia secular festeja esses pregadores. Daí o sucesso atual da “Teologia da Libertação”, que se fixou no relativismo moral como dogma de fé depois que o comunismo, enquanto sistema econômico, foi definitivamente derrotado. É verdade, ainda luta pelo comunismo no âmbito político, e aí talvez se o tente impor no âmbito econômico, mas o relativismo moral hoje é seu carro-chefe.
Claro que, para tais pregadores, mulheres deveriam ser admitidas ao Sacerdócio porque conquistaram a igualdade com os homens. Na verdade, homem e mulher são absolutamente iguais... em dignidade. No entanto, Deus os fez física, psicológica e espiritualmente diferentes, justamente para se complementarem perfeitamente [20]. Dar a ambos as mesmas funções é um grande erro. As habilidades de homem e mulher devem ser igualmente valorizadas, com a mesma importância. De maneira alguma, devem buscar em tudo realizar as mesmas coisas, ainda que haja muitas atividades facilmente executáveis por qualquer dos dois. Da mesma forma, no atual pensamento secular, o celibato sacerdotal é visto como ultrapassado, do tempo de uma moral sexual opressora. Relações pré-matrimoniais são normais, admitidas como uma boa experiência. Evidentemente, para quem desconhece o verdadeiro amor cristão, de entrega, renúncia, sacrifícios e felicidade plena pela doação, o sexo fica supervalorizado e dele se depende para se ter qualquer relacionamento. Decorre daí que fica inevitavelmente banalizado. Na verdade, não obstante, é perfeitamente possível amar sem se ter relações sexuais. A relação sexual é presente e dom de Deus para o amor integral, de entrega, partilha e doação, não uma brincadeira para se obter prazer e ser o único bem que uma relação possua.
Ainda num âmbito mais estritamente espiritual e religioso, a falsa idéia de amor descamba em indiferentismo. O Ecumenismo é deturpado; não existe uma verdade apenas, mas cada um possui a sua. Da mesma maneira, todas as verdades de todas as religiões são valorizadas. Espalha-se o erro pelo qual todas as religiões são igualmente boas, possuem igualmente a verdade e concedem igualmente a salvação [21]. Novamente é preciso repetir, por amor à humanidade, é necessário anunciar Jesus Cristo, seu Salvador, Redentor. A Salvação está menos na Sua pregação, curas, milagres, andanças, do que no Seu Sagrado Sacrifício, na Sua oferta de Si Mesmo. Nossa Salvação foi obtida quando Jesus assumiu o pecado da humanidade na Cruz, sofreu a paga do pecado, que é a morte, mas a venceu na Ressurreição. Pela Sua Morte, assumiu em si o castigo que a todos nós estava reservado, poupando-nos dele. Pela Sua Ressurreição, abriu-nos o Paraíso para nele vivermos pela eternidade [22].
Mesmo, portanto, que aqueles pregadores que anunciem tais erros sejam bons, alegres, talvez até santos em sua vida privada, ou que sejam atraentes aos olhos do relativismo reinante, disseminado pela mídia, ou que possuam boa oratória e retórica, o erro não deixa de ser erro. O amor sentimentalista pregado pelo nosso tempo nunca será amor mesmo, é apenas mau uso da palavra.

O mesmo erro, reflexamente, no âmbito da Liturgia

O erro do falso conceito de amor possui um reflexo bem específico, e por isso digno de nota, no âmbito da Liturgia, ao menos em duas searas. Na primeira, ocorre uma total desvalorização das normas em detrimento da intenção, do sentimento, do “coração” [23]. Nesse sentido, valoriza-se unicamente o que se está sentindo no momento em detrimento da postura geral [24].
A Igreja sempre proclamou a necessidade de estarem em sintonia sentimento e postura, atitude interna e externa, adesão íntima de coração e mente e respeito à norma litúrgica [25]. Ora, se é certo que a adesão externa e formal sem a correlata contrição se assemelha ao farisaísmo, uma adesão meramente intimista sem a correspondente conduta sóbria e obediente às normas, de regra, revela ao menos um certo laxismo e um amor provavelmente não tão maduro.
Insisto que o erro é o mesmo, apenas em outra seara. O amor sentimentalista da nossa sociedade dá total valor ao sentimento pelo que, como visto, não realiza os atos que caracterizam o amor. Numa amizade sentimentalista, pratica-se esporte e conta-se piadas juntos, mas, quando um precisa de ajuda, o outro dá as costas, embora “sem a intenção” de magoar, é que há muitas coisas a serem feitas. Numa relação amorosa sentimentalista, o sexo é supervalorizado porque se busca, acima de tudo, o máximo prazer, mas no momento em que os interesses colidem ou quando a relação mesma exige sacrifícios de um e de outro, acha-se melhor desfazê-la. Já numa relação conjugal de amor verdadeiro, o sexo é maravilhoso, mas é fruto do amor que sabe renunciar, entregar-se ao outro e partilhar. Quando os interesses colidem, a dificuldade é superada e quando são exigidos sacrifícios, eles são feitos de bom grado, ainda que nem sempre sem deixar de manifestar alguma contrariedade. Da mesma forma, em um amor sentimentalista para com Deus, o que vale é esse sentimento e a consolação que Ele dá quando de alguma oração, enquanto em um amor mais profundo, verdadeiramente cristão, esse amor é capaz de amar e respeitar também as normas que o Senhor mesmo estabelece para o culto devido, através da Igreja que instituiu. Lá, desrespeitam-se as normas, mas crê-se estar tudo bem por valer o que vai no coração. Aqui, o que vai no coração é manifesto numa obediência concreta.
Os defensores do amor sentimentalista em matéria litúrgica desrespeitam abertamente as normas porque o que importa é o que está no coração dos fiéis, ou porque o povo não compreende ou não conhece bem tais normas, nem seu sentido. Quanto à valorização unicamente do “coração”, já o vimos, é errada. Quanto ao desconhecimento do povo, é um argumento nojento, de tão falacioso e ardiloso, como toda a deturpação do amor é. Ora, se alguém, mesmo “o povo” não conhece ou não compreende alguma norma litúrgica, não há problema nenhum em se ensinar. O “povo” aprenderá e o problema estará superado. Viver-se-á uma celebração correta, com a compreensão adequada. Por que se cogita que a celebração desvalorizadora das normas pela ignorância do povo é melhor do que a formação da comunidade para uma melhor e mais correta celebração? Vejo duas respostas cabíveis: a preguiça de se aprender e ensinar as normas e a desimportância total dada a estas.
De toda sorte, não se pode ceder a tais tentações. Pessoalmente, deve-se fomentar o máximo o cultivo da devoção interior, pois só dela brota o verdadeiro culto a Deus. De outro lado, porém, justamente desse fomento deve brotar o amor e a formação litúrgica mais estrita, cuja obediência ao espírito e normas refletirá o fomento da vida interior. Em um sentido mais comunitário, a fim de que as comunidades possam aproveitar melhor a celebração, há de se as formar sempre mais e mais no amor a Deus, no espírito de amor, na contrição de coração e na compreensão da liturgia.
A segunda conseqüência concreta do amor sentimentalista em matéria litúrgica é um desvirtuamento total de seu sentido com a desvalorização do aspecto sacrificial da Santa Missa. Mais do que desvalorização do aspecto sacrificial é deturpação geral do que seja a Santa Missa. Na verdade, o erro aí passa por uma visão equivocada da própria oração e de sua finalidade. Para quem crê num amor sentimentalista e egoísta, a oração acontece porque eu preciso dela, para eu me sentir melhor. A oração não é para Deus, é para mim. Pode até ser dirigida a Deus, mas seu objetivo não é Lhe prestar culto, mas me consolar, enfim, fazer-me sentir melhor. E não é esse, em todas as dimensões já vistas, o objetivo do amor sentimentalista? Buscar a satisfação afetiva? Também o é quanto à oração. Evidentemente que precisamos da oração e ela nos faz bem. Entretanto, crer que esse é o grande objetivo da oração é um tanto egoísta. Rezamos por Deus e para Deus. Daí nos vem o consolo por temos rezado. Quando o objetivo é o próprio consolo, é de se duvidar que tenha havido verdadeira oração. Em matéria litúrgica mais estrita, o questionamento que se deve fazer é: para quem é a Santa Missa? Para Deus ou para mim? Para Deus ou para o povo? E uma adoração, ou a Liturgia das Horas? Para quem são? Para Deus ou para a comunidade reunida?
A Santa Missa é a renovação do Sacrifício Salvífico do Senhor pelo qual redimiu a humanidade, presidido pelo Sacerdote, com a participação dos fiéis. E o sacrifício é oferecido para Deus, ainda que nós o aproveitemos. A Santa Missa é dirigida a Deus. As orações litúrgicas são dirigidas ao Senhor, não ao povo [26]. O amor sentimentalista tem como corolário em matéria litúrgica, a visão de que o Santo Sacrifício é reunião de amigos, para se verem, partilharem a palavra, com “p” minúsculo, porque fica reduzida à partilha de uma conversa, e do pão, com “p” minúsculo, porque fica reduzido à partilha de um alimento que simbolizaria o espírito de solidariedade dos reunidos. Encontrarem-se os irmãos, partilharem, conversarem, alegrarem-se em comum, dividirem o pão numa refeição em comum são coisas muito boas, mas isso está muito longe de exaurir o que a Santa Missa é. Reduzi-la a essa visão é tirar o seu essencial, o seu conteúdo verdadeiramente salvífico.
O Mistério da Santa Missa possui algumas dimensões, que não podem ser reduzidas. Uma delas é a dimensão sacrificial. Retirada essa, perde todo o sentido. Por isso mesmo, é chamada também de Santo Sacrifício. Ocorre que a Santa Missa é a renovação do Sacrifício Salvífico do Senhor, pelo qual redimiu toda a humanidade na Sua Morte e Ressurreição. As palavras da Consagração, originadas na última Ceia do Senhor, evocam o Sacrifício que viria no dia seguinte: “Tomai e comei, isto é meu corpo que será entregue por vós” (grifo meu) e, realmente, o corpo santo do Senhor logo seria entregue por nós; “Tomai e bebei, isto é o meu sangue que será derramado por vós” (novamente, grifos meus) e, realmente, logo Jesus estaria derramando Seu Preciosíssimo sangue até a última gota por nós.
Em sua sede relativista, os adeptos do amor sentimentalista freqüentemente reduzem a figura de Jesus a menos do que é, havendo os que lhe negam a Ressurreição e a divindade. Em matéria litúrgica, tal erro se reflete justamente na perda do sentido sacrificial. Se Jesus não era Deus, não ressuscitou, não redimiu a humanidade, não há sacrifício a ser renovado. A Santa Missa fica reduzida à mera celebração (sem sentido, inclusive), cuja maior qualidade é reunir os adeptos para partilharem a palavra e o pão (tudo em minúscula). Pior, talvez, que os que negam expressamente a divindade e Ressurreição de Jesus são os que nela crêem, mas agem como se não fossem grandes Mistério Divinos, como se do Mistério da Redenção não dependesse suas vidas e a eternidade, de modo que, embora dizendo crer em tais mistérios, na celebração valoriza mais o sentimento do povo e sua reunião e partilha do que a Renovação do Sacrifício Salvífico do Senhor em si mesma.
A Santa Missa também possui um sentido comensal, dado por Jesus mesmo, como fica expresso no sentido do discurso do “Pão da Vida”, mas cuja valorização tem sido freqüentemente feita inaceitavelmente em detrimento do sentido sacrificial da Celebração Eucarística. Na Santa Missa, Jesus se dá como comida, pelo que é verdadeiramente a celebração um banquete. O Senhor mesmo afirmou: “Jesus disse: ‘Em verdade em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem consome a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois minha carne é verdadeira comida e meu sangue é verdadeira bebida. Quem consome minha carne e bebe meu sangue permanece em mim, e eu nele (...) Este é o pão vivo que desceu do céu. Não é como aquele que vossos pais comeram – e no entanto morreram. Quem consome este pão viverá para sempre” (Jo 6,53-56.58).
No entanto, o sentimentalismo deturpa mesmo o sentido comensal da Santa Missa. Ora, o sentido é que Jesus dá Seu Corpo Sacratíssimo e Seu Sangue Preciosíssimo como comida e bebida para herdarmos a eternidade [27]. O aspecto comensal que muitos hoje querem valorizar, e que muitos dentro da Santa Igreja Católica querem valorizar, em detrimento do sacrificial, é um aspecto comensal meramente humano, da alegria dos fiéis de se encontrarem, de estarem juntos, de cantarem, partilharem e comerem juntos, como irmãos. O centro do valor não está em Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que se dá em alimento para herdarmos a eternidade. O centro é a reunião fraterna entre irmãos, que possui um momento de partilha do pão, que não se crê ser o Corpo do Senhor, ou, talvez pior, crendo na Presença Real, dá-lhe menos importância do que uma partilha de pão comum (difícil acreditar aqui, que há um credo real e maduro no Mistério da Presença Real).
Uma reunião de fiéis para partilhar, ouvir a Escritura e pôr em comum algum alimento é coisa muito boa, de muito valor e que alegra os corações. Crer que isso é a Santa Missa, ou seu principal aspecto, é erro gravíssimo, pois essa partilha tem, a toda evidência, valor infinitamente menor que o Mistério da Cruz e Ressurreição na Santa Missa renovado, que nos dá a Salvação e que o fato de ser Jesus Cristo mesmo quem se dá como alimento para herdarmos a vida eterna. É ainda um reducionismo inaceitável. É de se rejeitar, portanto, semelhante visão do Mistério Eucarístico.

Oração Conclusiva

Que o presente escrito sirva a todos seus leitores para retomarem a importância dada ao Mistério Eucarístico e ao que realmente é, rejeitando os erros e reducionismos em relação a ele. Que Maria Santíssima nos ajude a todos a reconhecer o verdadeiro amor de Cristo, comprometido e comprometedor, real e operante, rejeitando os erros da nossa sociedade em relação a ele, mesmo quando ocorridos dentro da Santa Igreja Católica, inclusive na celebração do ápice e fonte da vida cristã que é a Eucaristia.
Que o Senhor nos abençoe e que a intercessão da Santíssima Virgem, Medianeira de todas as Graças, Mãe Acolhedora, auxilie-nos em viver maduramente o amor cristão, com todas as suas exigências, de entrega e doação, e a assim anunciá-lo e testemunhá-lo. Que São José nos ajude a amarmos verdadeiramente ao Senhor Deus, prestando-Lhe um culto verdadeiro em nossa oração e sabendo valorizar e celebrar o ápice da vida cristã, no Santo Sacrifício da Missa, com intimidade, amor, dignidade e decoro.
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Notas:
[1] O Catecismo da Igreja Católica mesmo nos garante a primazia do amor: “Toda a finalidade da doutrina e do ensinamento deve ser posta no amor que não acaba. Com efeito, pode-se facilmente expor o que é preciso crer, esperar ou fazer; mas sobretudo é preciso fazer sempre com que apareça o Amor de Nosso Senhor, para que cada um compreenda que cada ato de virtude perfeitamente cristão não tem outra origem senão o Amor e outro fim senão o Amor” (Cat., n.° 25); “Deus amou primeiro. O amor do Deus único é lembrado na primeira das ‘dez palavras’. Em seguida os mandamentos explicitam a resposta de amor que o homem é chamado a dar a Deus” (Cat. n.° 2083); “Os mandamentos propriamente ditos vêm em segundo lugar; exprimem as implicações da pertença a Deus, instituída pela Aliança” (Cat. n.° 2062). Haveria incontáveis citações, no Catecismo e em muitos outros documentos, acerca do tema. Ficamos com os acima.
[2] Cf 1Cor, 13.

[3] O próprio Catecismo da Igreja Católica, quando fala da “Vida em Cristo” e discorre sobre os Dez Mandamentos, faz uma divisão, enquadrando os três primeiros no “Amar a Deus” (n.°s. 2083-2195) e os sete demais no “Amar ao Próximo” (n.°s 2196-2557).[4]
[4] O Papa Bento XVI afirma categoricamente: “Nós cremos no amor de Deus – desse modo pode o cristão exprimir a opção fun damental da sua vida.  Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá a vida um novo horizonte e, dessa forma, o rumo decisivo” (Papa Bento XVI, Carta Encíclica Deus caritas est, n.° 01).
[5] Novamente, o Papa Bento XVI o afirma: “O termo ‘amor’ tornou-se, hoje, uma das palavras mais usadas e mesmo abusaras, à qual associamos significados completamente diferentes” (Papa Bento XVI, Carta Encíclica Deus caritas est, n.° 02). Não vamos, porém, fazer a mesma purificação semântica utilizada pelo Santo Padre, mas procuraremos demonstrar um sentido cristão do termo, aplicado aí tanto no amor a Deus, como no amor ao próximo, oposto aos sentidos que o mundo dá, sempre nos pautando pela diferenciação prática e concreta, ainda que se partindo da diferença conceitual.  

[6] Já tendo este autor terminado o presente artigo, mas revendo recentíssimas palavras do Santo Padre Bento XVI a Bispos brasileiros, justamente sobre a questão do amor cristão na família, resolvi por bem acrescentá-las: “Mas, enquanto a Igreja compara a família humana com a vida da Santíssima Trindade – primeira unidade de vida na pluralidade das pessoas – e não se cansa de ensinar que a família tem o seu fundamento no matrimônio e no plano de Deus, a consciência difusa no mundo secularizado vive na incerteza mais profunda a tal respeito, especialmente desde que as sociedades ocidentais legalizaram o divórcio. O único fundamento reconhecido parece ser o sentimento ou a subjetividade individual que exprime-se na vontade de conviver. Nesta situação, diminui o número de matrimônios, porque ninguém compromete a vida sobre uma premissa tão frágil e inconstante, crescem as uniões de fato e aumentam os divórcios. Sobre esta fragilidade, consuma-se o drama de tantas crianças privadas de apoio dos pais, vítimas do mal-estar e do abandono e expande-se a desordem social. A Igreja não pode ficar indiferente diante da separação dos cônjuges e do divórcio, diante da ruína dos lares e das conseqüências criadas pelo divórcio nos filhos. Estes, para ser instruídos e educados, precisam de referências extremamente precisas e concretas, isto é, de pais determinados e certos que de modo diverso concorrem para a sua educação. Ora é este princípio que a prática do divórcio está minando e comprometendo com a chamada família alargada e móvel, que multiplica os ‘pais’ e as ‘mães’ e faz com que hoje a maioria dos que se sentem ‘órfãos’ não sejam filhos sem pais, mas filhos que os têm em excesso. Esta situação, com as inevitáveis interferências e cruzamento de relações, não pode deixar de gerar conflitos e confusões internas contribuindo para criar e gravar nos filhos uma tipologia alterada de família, assimilável de algum modo à própria convivência por causa da sua precariedade.É firme convicção da Igreja que os problemas atuais, que encontram os casais e debilitam a sua união, têm a sua verdadeira solução num regresso à solidez da família cristã, lugar de confiança mútua, de dom recíproco, de respeito da liberdade e de educação para a vida social. É importante recordar que, ‘pela sua própria natureza, o amor dos esposos exige a unidade e a indissolubilidade da sua comunidade de pessoas, a qual engloba toda a sua vida’ (Catecismo da Igreja Católica, 1644). De fato, Jesus disse claramente: ‘O que Deus uniu, o homem não separe’ (Mc 10, 9), e acrescenta: ‘Quem despede a sua mulher e se casa com outra, comete adultério contra a primeira. E se uma mulher despede o seu marido e se casa com outro, comete adultério também’ (Mc 10, 11-12). Com toda a compreensão que a Igreja possa sentir face a tais situações, não existem casais de segunda união, como os há de primeira; aquela é uma situação irregular e perigosa, que é necessário resolver, na fidelidade a Cristo, encontrando com a ajuda de um sacerdote um caminho possível para pôr a salvo quantos nela estão implicados.
Para ajudar as famílias, vos exorto a propor-lhes, com convicção, as virtudes da Sagrada Família: a oração, pedra angular de todo lar fiel à sua própria identidade e missão; a laboriosidade, eixo de todo matrimônio maduro e responsável; o silêncio, cimento de toda a atividade livre e eficaz. Desse modo, encorajo os vossos sacerdotes e os centros pastorais das vossas dioceses a acompanhar as famílias, para que não sejam iludidas e seduzidas por certos estilos de vida relativistas, que as produções

cinematográficas e televisivas e outros” (Bento XVI, Discurso de 25 de setembro de 2009, aos Bispos Brasileiros das Regiões Nordeste 1 e 4, em visita ad limina).
[7] Raniero Cantalamessa, cf “O Poder da Cruz”, Loyola, 4.ª ed., 2006, São Paulo, Cap. 12, págs. 88-89
[8] Incontáveis vezes a Igreja, impelida sempre pela caridade e por sua função materna, teve que ensinar e “re-ensinar” a humanidade que a busca pelo bem da pessoa, da felicidade, passa pelo amor, que é visceralmente ligado à verdade e à moralidade, ao bem moral, e isso constitui a verdadeira liberdade. Não existe verdadeiro amor, não existe verdadeira felicidade, não existe liberdade real sem verdade, sem moralidade. O Servo de Deus João Paulo II o disse maravilhosa e claramente na Encíclica Veritatis Splendor, sobre questões morais, tratando exatamente sobre o tema: “Na realidade, a verdadeira compreensão e a genuína compaixão devem significar amor pela pessoa, pelo seu verdadeiro bem, pela sua liberdade autêntica. E isto, certamente, não acontece escondendo ou enfraquecendo a verdade moral, mas sim propondo-a no seu íntimo significado de irradiação da Sabedoria eterna de Deus, que nos veio por Cristo, e de serviço ao homem, ao crescimento da sua liberdade e à consecução da sua felicidade” (João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis Splendor, n.° 95).O Papa Bento XVI, na sua recentíssima Carta Encíclica Caritas in Veritate, coloca claramente a justiça (evidentemente ligada ao bem moral), como pressuposto da caridade, inclusive citando Paulo VI: “A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é ‘meu’; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é ‘dele’, o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso ‘dar’ ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é ‘inseparável da caridade’, é-lhe intrínseca. A justiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, ‘a medida mínima’ dela, parte integrante daquele amor ‘por ações e em verdade’ (1 Jo 3, 18) a que nos exorta o apóstolo João. Por um lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento e o respeito dos legítimos direitos dos indivíduos e dos povos. Aquela empenha-se na construção da ‘cidade do homem’ segundo o direito e a justiça. Por outro, a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão. A ‘cidade do homem’ não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo” (Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in Veritate n. 07). E o Papa Bento XVI coloca tudo com clareza absoluta, ao dizer, no espírito do presente artigo, que amor sem verdade é sentimentalismo: “Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente. A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos do emotivismo, que a despoja de conteúdos relacionais e sociais, e do fideísmo, que a priva de amplitude humana e universal” (Bento XVI, Carta Encíclica Caritas in Veritate n. 03). Veja-se, não é este autor quem o diz, mas o Santo Padre: amor, sem verdade, “cai no sentimentalismo”, mais, amor, sem verdade, “torna-se um invólucro vazio”, que pior, pode-se encher de qualquer coisa, ou nas palavras do Santo Padre: “se pode encher arbitrariamente”. Ou seja, sem um conteúdo objetivo, à mercê das emoções, amor vira arbitrariedade, logo, injustiça, possivelmente mau. Amor, aí, já não é amor, mas possivelmente seu oposto, dizendo-o exatamente o Santo Padre: “amor (...) acaba (...) uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente”. Também forte o que diz o sucessor de Pedro sobre o amor ficar: “prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos”.
[9] E não é capaz. O Catecismo da Igreja Católica é expresso: “Uma intenção boa (por exemplo: ajudar o próximo) não torna bom nem justo um comportamento em si mesmo desordenado (como a mentira e a maledicência). O fim não justifica os meios. Assim, não se pode justificar a condenação dum inocente como meio legítimo para salvar o povo. Pelo contrário, uma intenção má acrescentada (por exemplo, a vanglória) torna mau um ato que, em si, pode ser bom (como a esmola)”(Cat. 1753).
[10] Tenho falado e falarei muitas vezes de “mundo atual”, “mundo contemporâneo”, “nossa sociedade”, “nosso tempo”, “a mentalidade do nosso tempo”. Em verdade, não apenas se fala de “mundo” como realidade secular oposta à Igreja e ao que ela prega sobre o amor, mas situado o “mundo” ou “a mentalidade” no “nosso tempo”. De fato, já houve outras sociedades, outros tempos, em que se conhecia bem e se levava muito em consideração as realidades espirituais e se compreendia a moralidade intrínseca aos atos. Falo, evidentemente, da Idade Média, tão difamada em nosso tempo, mas que, a despeito dos muitos erros naquela época cometidos, possuía uma mentalidade mais verdadeiramente cristã muito melhor disseminada pelo Ocidente do que se tem hoje.
[11] Raniero Cantalamessa fala magistralmente da perda de sentido do pecado passando de ser o que é mau aos olhos de Deus ao que é mau aos olhos do homem: “Mas o motivo pelo qual insisto no pecado da impiedade é ainda mais profundo do que isso, e é que em toda essa parolagem sobre o pecado contra o homem – na qual se prescinde da Palavra de Deus – perde-se o conceito mesmo de pecado. Pecado não é mais ‘aquilo que é mau aos olhos de Deus’ (cf. Sl 51,6), mas o que é mau aos olhos do homem. O homem determina o que é pecado, resolve por si mesmo o que é bom e o que é mau” (Cantalamessa, Raniero, “A Vida sob o Senhorio de Cristo”, Loyola, 6.ª ed., 1996, São Paulo, Cap. 2, pág. 35).
[12] Falei com mais vagar da existência da realidade espiritual e da indiferença do mundo atual a ela, embora em termos mais simples, na Carta à Comunidade Paz & Mel de título “Realidade Espiritual e Vocação”.
[13] É inequívoco que, por definição, todo e qualquer pecado atenta necessariamente contra Deus e contra a solidariedade humana. Pode-se dizer, portanto, que todo o pecado, mesmo o mais escondido e privado, atentam contra Deus e contra o homem. No entanto, tomando-se as aparências, há pecados que atentam mais visivelmente contra Deus e outros mais visivelmente contra o homem. A condenação destes em contraste com a indiferença em relação àqueles denota como o mundo passou a ter por critério de pecado, não o que atenta contra Deus, mas o que atenta contra o homem (tendo-se por base unicamente as aparências – desprezando-se as realidades espirituais, conforme já se disse). É do Padre Raniero Cantalamessa esse pensamento: “Se insisto no pecado contra Deus – a impiedade –, não o faço por não existir em nosso mundo também o pecado contra o homem, ou por não ser este igualmente grave, mas porque ele, hoje, é reconhecido e denunciado por toda a parte, ao passo que o pecado contra Deus, que é sua raiz, não mais se reconhece, ou é subestimado” (Cantalamessa, Raniero, “A Vida sob o Senhorio de Cristo”, Loyola, 6.ª ed., 1996, São Paulo, Cap. 2, pág. 35).

[14] Sobre a existência de uma moral universal e imutável, afirma-o brilhantemente o Papa João Paulo II na Carta Encíclica Veritatis Splendor: “É justo e bom, sempre e para todos, servir a Deus, prestar-Lhe o culto devido e honrar verdadeiramente os pais. Tais preceitos positivos, que prescrevem cumprir certas ações e promover determinadas atitudes, obrigam universalmente; são imutáveis; congregam no mesmo bem comum todos os homens de cada época da história, criados para ‘a mesma vocação e o mesmo destino divino’. Estas leis universais e permanentes correspondem a conhecimentos da razão prática e são aplicadas aos atos particulares através do juízo da consciência. O sujeito agente assimila pessoalmente a verdade contida na lei: apropria-se, faz sua esta verdade do seu ser, mediante os atos e as correlativas virtudes. Os preceitos negativos da lei natural são universalmente válidos: obrigam a todos e cada um, sempre e em qualquer circunstância. Trata-se, com efeito, de proibições que vetam uma determinada ação semper et pro semper, sem exceções, porque a escolha de um tal comportamento nunca é compatível com a bondade da vontade da pessoa que age, com a sua vocação para a vida com Deus e para a comunhão com o próximo. É proibido a cada um e sempre infringir preceitos que vinculam, todos e a qualquer preço, a não ofender em ninguém e, antes de mais, em si próprio, a dignidade pessoal e comum a todos.” (Papa João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis Splendor, n.°, 52).
[15] O Servo de Deus João Paulo II claramente denunciou as doutrinas esquecidas da dimensão espiritual (transcendente) do homem, de modo a deixar à consciência humana meramente a definição do que é bom ou mau, o que é errado: “Nesta direção, movem-se as doutrinas que perderam o sentido da transcendência ou as que são explicitamente atéias. Atribuíram-se à consciência individual as prerrogativas de instância suprema do juízo moral, que decide categórica e infalivelmente o bem e o mal (...) o juízo moral é verdadeiro pelo próprio fato de provir da consciência. Deste modo, porém, a imprescindível exigência de verdade desapareceu em prol de um critério de sinceridade, de autenticidade, de ‘acordo consigo próprio’, a ponto de se ter chegado a uma concepção radicalmente subjetivista do juízo moral”“Como facilmente se compreende, não é alheia a esta evolução, a atual crise em torno da verdade. Perdida a idéia de uma verdade universal, cognoscível pela razão humana (...) tende-se a conceder à consciência do indivíduo o privilégio de estabelecer autonomamente os critérios do bem e do mau e agir em conseqüência. Esta visão identifica-se com uma ética individualista, na qual cada um se vê confrontado com a sua verdade, diferente da verdade dos outros” (Papa João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis Splendor, n.° 32).

[16] Importante que se diga que a intenção é muito importante. Realmente, uma má intenção pode corromper um ato moralmente bom. As intenções são elementos muito importantes na constituição dos atos humanos. No entanto, o presente trabalho não está enfatizando essa importância justamente porque o erro mais comum a nossa volta não é ser desvalorizada, mas ser valorizada além do que é correto. O erro que nos cerca está fundado em que a intenção seja o elemento mais importante em um ato e isso está incorreto. De fato, a intenção, por importante que seja, é-o bem menos do que o objeto mesmo do ato e esta é a realidade que se precisa ressaltar no nosso tempo, como já dito.
[17] As realidades espirituais existem. Diz o Catecismo da Igreja Católica: “Na Sagrada Escritura, a expressão ‘céu e terra’ significa: tudo o que existe, a criação inteira. Indica também o laço que, no interior da criação, ao mesmo tempo une e distingue céu e terra: ‘a terra’ é o mundo dos homens; ‘o céu’ ou ‘os céus’ pode designar o firmamento, mas também o ‘lugar’ próprio de Deus: ‘Pai nosso que estais nos céus’ (Mt 5, 16), e, por conseguinte, também ‘o céu’ que é a glória escatológica. Finalmente, a palavra ‘céu’ indica o ‘lugar’ das criaturas espirituais – os anjos – que rodeiam Deus”
A profissão de fé do quarto Concílio de Latrão afirma que Deus, ‘desde o princípio do tempo, criou do nada ao mesmo tempo uma e outra criatura, a espiritual e a corporal, isto é, os anjos e o mundo terrestre. Depois criou a criatura humana, que participa das duas primeiras, formada, como é, de espírito e corpo’” (Cat. n.°s 326-327); “A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual” (Cat. n.° 362); “Muitas vezes o termo alma designa na Sagrada Escritura a vida humana ou a pessoa humana inteira. Mas designa também o que há de mais íntimo no homem e o que há nele de maior valor, aquilo que mais particularmente o faz ser imagem de Deus: ‘alma’ significa o princípio espiritual do homem” (Cat. n.° 364). É completamente despicienda qualquer citação bíblica falando de tais realidades.
[18] Ao contrário, particularmente, concordo integralmente com o autor Amadeo Cencini, tendo como importantíssimas as três dimensões da relação com Deus e, conseqüentemente, de toda a conduta pessoal: a dimensão intelectual (compreender, crescer no entendimento, estudar), a dimensão moral (lutar asceticamente pelo bem, contra o próprio pecado e tendência ao mal, contra a concupiscência), e a dimensão afetiva (de relação pessoa, de cultivo de afeto, sentimentos positivos, adesão afetiva à verdade, emoção mesmo no trato dom Deus e nas relações interpessoais). Ocorre que o mesmo autor manifesta os perigos da hipertrofia de qualquer das dimensões em relação às demais. Decorre daí uma visão distorcida de Deus, do amor e da realidade. À toda evidência, justamente o sentimentalismo (supervalorização da dimensão afetiva em detrimento das outras duas) é o erro mais comum no mundo de hoje. Vide, do autor, as obras “Viver Reconciliados” e “Amarás o Senhor teu Deus”, ambas da Editora Paulinas.
[19] Pio XII já via e denunciava o erro que se infiltrava na Igreja, com grande atualidade: “...De fato, as verdades que se referem a Deus e às relações entre os homens e Deus transcendem por completo a ordem dos seres sensíveis e, quando entram na prática da vida e a informam, exigem o sacrifício e a abnegação própria. Ora, o entendimento humano encontra dificuldades na aquisição de tais verdades, já pela ação dos sentidos e da imaginação, já pelas más inclinações, nascidas do pecado original. Isso faz com que os homens, em semelhantes questões, facilmente se persuadam de ser falso e duvidoso o que não querem que seja verdadeiro. Por isso deve-se defender que a revelação divina é moralmente necessária para que, mesmo no estado atual do gênero humano, todos possam conhecer com facilidade, com firme certeza e sem nenhum erro, as verdades religiosas e morais que não são por si inacessíveis à razão.Quanto à teologia, o que alguns pretendem é diminuir o mais possível o significado dos dogmas e libertá­-los da maneira de exprimi-los já tradicional na Igreja, e dos conceitos filosóficos usados pelos doutores católicos, a fim de voltar, na exposição da doutrina católica, às expressões empregadas pela Sagrada Escritura e pelos santos Padres. Esperam que, desse modo, o dogma, despojado de elementos que chamam extrínsecos à revelação divina, possa comparar-se frutuosamente com as opiniões dogmáticas dos que estão separados da unidade da Igreja, e que, por esse caminho, se chegue pouco a pouco à assimilação do dogma católico e das opiniões dos dissidentes (...)Reduzindo a doutrina católica a tais condições, crêem que se abre também o caminho para obter, segundo exigem as necessidades atuais, que o dogma seja formulado com as categorias da filosofia moderna, quer se trate do imanentismo, ou do idealismo, ou do existencialismo, ou de qualquer outro sistema. Alguns mais audazes afirmam que isso se pode e se deve fazer também em virtude de que, segundo eles, os mistérios da fé nunca se podem expressar por conceitos plenamente verdadeiros, mas só por conceitos aproximativos e que mudam continuamente, por meio dos quais a verdade se indica, é certo, mas também necessariamente se desfigura. Por isso não pensam ser absurdo, mas antes, pelo contrário, crêem ser de todo necessário que a teologia, conforme os diversos sistemas filosóficos que no decurso do tempo lhe servem de instrumento, vá substituindo os antigos conceitos por outros novos; de sorte que, de maneiras diversas e até certo ponto opostas, porém, segundo eles, equivalentes, faça humanas aquelas verdades divinas. Acrescentam que a história dos dogmas consiste em expor as várias formas que sucessivamente foi tomando a verdade revelada, de acordo com as várias doutrinas e opiniões que através dos séculos foram aparecendo.Pelo que foi dito é evidente que tais esforços não somente levam ao relativismo dogmático, mas já de fato o contém, pois o desprezo da doutrina tradicional e de sua terminologia favorece tal relativismo e o fomenta. Desgraçamente, esses amigos de novidades facilmente passam do desprezo da teologia escolástica ao pouco caso e até mesmo ao desprezo do próprio magistério da Igreja, que tanto prestígio tem dado com a sua autoridade àquela teologia. Apresentam este magistério como empecilho ao progresso e obstáculo à ciência; e já existem acatólicos que o consideram como freio injusto, que impede alguns teólogos mais cultos de renovar a teologia (...)Nem se deve crer que os ensinamentos das encíclicas não exijam, por si, assentimento, sob alegação de que os sumos pontífices não exercem nelas o supremo poder de seu magistério (...)Voltando às novas teorias de que acima tratamos, alguns há que propõem ou insinuam nos ânimos muitas opiniões que diminuem a autoridade divina da Sagrada Escritura. Pois atrevem-se a adulterar o sentido das palavras com que o concílio Vaticano define que Deus é o autor da Sagrada Escritura, e renovam uma teoria já muitas vezes condenada, segundo a qual a inerrância da Sagrada Escritura se estende unicamente aos textos que tratam de Deus mesmo, ou da religião, ou da moral. Ainda mais, sem razão falam de um sentido humano da Bíblia, sob o qual se oculta o sentido divino, que é, segundo eles, o único infalível. Na interpretação da Sagrada Escritura não querem levar em consideração a analogia da fé nem a tradição da Igreja; de modo que a doutrina dos santos Padres e do Sagrado magistério deveria ser aferida por aquela das Sagradas Escrituras explicadas pelos exegetas de modo puramente humano; o que seria preferível a expor a sagrada Escritura conforme a mente da Igreja, que foi constituída por nosso Senhor Jesus Cristo guarda e intérprete de todo o depósito das verdades reveladas.E não há que admirar terem essas novidades produzido frutos venenosos em quase todos os capítulos da teologia. Põe-se em dúvida que a razão humana, sem o auxílio da divina revelação e da graça divina, possa demonstrar a existência de Deus pessoal, com argumentos tirados das coisas criadas; nega-se que o mundo tenha tido princípio e afirma-se que a criação do mundo é necessária, pois procede da necessária liberalidade do amor divino; nega-se também a Deus a presciência eterna e infalível das ações livres dos homens; opiniões de todo contrárias às declarações do concílio Vaticano.Alguns também põem em discussão se os anjos são pessoas; e se a matéria difere essencialmente do espírito. Outros desvirtuam o conceito de gratuidade da ordem sobrenatural, sustentando que Deus não pode criar seres inteligentes sem ordená-los e chamá-los à visão beatífica. E não só isso, mas, ainda, passando por cima das definições do concílio de Trento, destrói-se o conceito de pecado original juntamente com o de pecado em geral, como ofensa a Deus, e também o da satisfação que Cristo ofereceu por nós. Nem faltam os que defendem que a doutrina da transubstanciação, baseada como está num conceito filosófico já antiquado de substância, deve ser corrigida; de maneira que a presença real de Cristo na santíssima eucaristia se reduza a um simbolismo, no qual as espécies consagradas não são mais do que sinais externos da presença espiritual de Cristo e de sua união íntima com os féis, membros seus no corpo místico” (Papa Pio XII, Carta Encíclica Humani Generis, n.°s 2-3, 15-16, 18, 20, 22, 25-26). 
[20] Diz o Compêndio de Doutrina Social da Igreja: “O ‘masculino’ e o feminino’ diferenciam dois indivíduos de igual dignidade, que porém não refletem uma igualdade estática, porque o específico feminino é diferente do específico masculino, e esta diversidade na igualdade é enriquecedora e indispensável para uma harmoniosa convivência humana (...)A mulher é o complemento do homem, como o homem é o complemento da mulher: mulher e homem se complementam mutuamente, não somente do ponto de vista físico e psicológico, mas também ontológico. É somente graças a essa dualidade do ‘masculino’ e do ‘feminino’ que o ‘humano’ se realiza plenamente (...) A mulher é ‘ajuda’ para o homem, como o homem é ‘ajuda’ para a mulher!: no encontro de ambos realiza-se uma concepção unitária da pessoa humana, baseada não na lógica do egocentrismo e da auto-afirmação, mas na lógica do amor e da solidariedade” (Pontifício Conselho Justiça e Paz, Compêndio de Doutrina Social da Igreja, n.°s 146-147).
Da mesma forma, o Catecismo da Igreja Católica: “O homem e a mulher são feitos ‘um para o outro’: não que Deus os tivesse feito apenas ‘pela metade’ e ‘incompletos’; criou-os para uma comunhão de pessoas, na qual cada um dos dois pode ser ‘ajuda’ para o outro, por serem ao mesmo tempo iguais enquanto pessoas (’osso de meus ossos...’) e complementares enquanto masculino e feminino. No matrimônio, Deus os une de maneira que, formando ‘uma só carne’ (Gn 2,24), possam transmitir a vida humana” (Cat. n.° 372).
[21] Desse erro já nos advertiu e instruiu a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, que à época tinha por Prefeito o então Cardeal Joseph Ratzinger: “O perene anúncio missionário da Igreja é hoje posto em causa por teorias de índole relativista, que pretendem justificar o pluralismo religioso, não apenas de fato, mas também de iure (ou de principio). Daí que se considerem superadas, por exemplo, verdades como o caráter definitivo e completo da revelação de Jesus Cristo, a natureza da fé cristã em relação com a crença nas outras religiões, o caráter inspirado dos livros da Sagrada Escritura, a unidade pessoal entre o Verbo eterno e Jesus de Nazaré, a unidade da economia do Verbo Encarnado e do Espírito Santo, a unicidade e universalidade salvífica do mistério de Jesus Cristo, a mediação salvífica universal da Igreja, a não separação, embora com distinção, do Reino de Deus, Reino de Cristo e Igreja, a subsistência na Igreja Católica da única Igreja de Cristo. Na raiz destas afirmações encontram-se certos pressupostos, de natureza tanto filosófica como teológica, que dificultam a compreensão e a aceitação da verdade revelada. Podem indicar-se alguns: a convicção de não se poder alcançar nem exprimir a verdade divina, nem mesmo através da revelação cristã; uma atitude relativista perante a verdade, segundo a qual, o que é verdadeiro para alguns não o é para outros; a contraposição radical que se põe entre a mentalidade lógica ocidental e a mentalidade simbólica oriental; o subjectivismo de quem, considerando a razão como única fonte de conhecimento, se sente ‘incapaz de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser’; a dificuldade de ver e aceitar na história a presença de acontecimentos definitivos e escatológicos; o vazio metafísico do evento da encarnação histórica do Logos eterno, reduzido a um simples aparecer de Deus na história; o eclectismo de quem, na investigação teológica, toma ideias provenientes de diferentes contextos filosóficos e religiosos, sem se importar da sua coerência e conexão sistemática, nem da sua compatibilidade com a verdade cristã; a tendência, enfim, a ler e interpretar a Sagrada Escritura à margem da Tradição e do Magistério da Igreja. Na base destes pressupostos, que se apresentam com matizes diferentes, por vezes como afirmações e outras vezes como hipóteses, elaboram-se propostas teológicas, em que a revelação cristã e o mistério de Jesus Cristo e da Igreja perdem o seu carácter de verdade absoluta e de universalidade salvífica, ou ao menos se projecta sobre elas uma sombra de dúvida e de insegurança (...) Para fazer frente a essa mentalidade relativista, que se vai difundindo cada vez mais, há que reafirmar, antes de mais, o caráter definitivo e completo da revelação de Jesus Cristo. Deve, de fato, crer-se firmemente na afirmação de que no mistério de Jesus Cristo, Filho de Deus Encarnado, que é ‘o caminho, a verdade e a vida’ (cf. Jo 14,6), dá-se a revelação da plenitude da verdade divina: ‘Ninguém conhece o Filho senão o Pai e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o queira revelar’ (Mt 11,27); ‘A Deus, ninguém jamais O viu. O próprio Filho Único, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer’ (Jo 1,18); ‘É em Cristo que habita corporalmente toda a plenitude da divindade e n'Ele participais da sua plenitude’ (Col 2,9) (...)É, por conseguinte, contrária à fé da Igreja a tese que defende o caráter limitado, incompleto e imperfeito da revelação de Jesus Cristo, que seria complementar da que é presente nas outras religiões. A razão de fundo de uma tal afirmação basear-se-ia no fato de a verdade sobre Deus não poder ser compreendida nem expressa na sua globalidade e inteireza por nenhuma religião histórica e, portanto, nem pelo cristianismo e nem sequer por Jesus Cristo.

Semelhante posição está em total contradição com as precedentes afirmações de fé, segundo as quais, temos em Jesus Cristo a revelação plena e completa do mistério salvífico de Deus. Portanto, as palavras, as obras e o inteiro fato histórico de Jesus, se bem que limitados enquanto realidades humanas, têm, todavia, como sujeito a Pessoa divina do Verbo Encarnado, ‘verdadeiro Deus e verdadeiro homem’, e assim comportam o caráter definitivo e completo da revelação dos caminhos salvíficos de Deus, embora a profundidade do mistério divino em si mesmo permaneça transcendente e inesgotável. A verdade sobre Deus não é abolida nem diminuída pelo fato que é proferida numa linguagem humana. É, invés, única, plena e completa, porque quem fala e atua é o Filho de Deus Encarnado. Daí a exigência da fé em se professar que o Verbo feito carne é, em todo o seu mistério que vai da encarnação à glorificação, a fonte, participada mas real, e a consumação de toda a revelação salvífica de Deus à humanidade, e que o Espírito Santo, que é o Espírito de Cristo, ensinará aos Apóstolos e, por meio deles, à Igreja inteira de todos os tempos, esta ‘verdade total’ (Jo 16, 13)” (Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Dominus Iesus, sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, n.°s 4-6).
[22] Atesta-nos o Catecismo da Igreja Católica: “Jesus, o Filho de Deus, sofreu livremente a morte por nós, em uma submissão total e livre à vontade de Deus, seu Pai. Por sua morte ele venceu a morte, abrindo assim a todos os homens a possibilidade da salvação” (Cat. n.° 1019); “O Filho de Deus, por sua Morte e Ressurreição, nos libertou do poder de Satanás e da morte e nos transferiu para o reino do Pai” (Cat. n.° 1086). “Por sua Paixão, Cristo livrou-nos de Satanás e do pecado. Mereceu-nos a vida nova na graça do Espírito Santo” (Cat. n.° 1708); “Por sua gloriosa cruz, Cristo obteve a salvação de todos os homens. Resgatou-nos do pecado” (Cat. n.° 1741); “A vitória sobre o ‘príncipe deste mundo’ (Jô 14,30), foi alcançada, de uma vez por todas, na Hora em que Jesus se entregou livremente à morte para nos dar a sua vida” (Cat. n.° 2853).
Quanto ao erro atual, novamente nos defende a Dominus Iesus: “É igualmente frequente a tese que nega a unicidade e a universalidade salvífica do mistério de Jesus Cristo. Tal posição não tem nenhum fundamento bíblico. Deve, invés, crer-se firmemente, como dado perene da fé da Igreja, a verdade de Jesus Cristo, Filho de Deus, Senhor e único salvador, que no seu evento de encarnação, morte e ressurreição realizou a história da salvação, a qual tem n'Ele a sua plenitude e o seu centro (...)
Deve, portanto, crer-se firmemente como verdade de fé católica que a vontade salvífica universal de Deus Uno e Trino é oferecida e realizada de uma vez para sempre no mistério da encarnação, morte e ressurreição do Filho de Deus” (Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Dominus Iesus, sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, n.°s 13-14).

[23] Já o prenunciava o saudoso Papa Pio XII: “Ora, se de uma parte verificamos com pesar que em algumas regiões o sentido, o conhecimento e o estudo da liturgia são às vezes escassos ou quase nulos; de outra, notamos, com muita apreensão, que há algumas pessoas muito ávidas de novidades e que se afastam do caminho da sã doutrina e da prudência. Na intenção e desejo de um renovamento litúrgico, esses inserem muitas vezes princípios que, em teoria ou na prática, comprometem esta santíssima causa, e freqüentemente até a contaminam de erros que atingem a fé católica e a doutrina ascética” (Papa Pio XII, Carta Encíclica Mediator Dei, n.° 7).O Santo Padre João Paulo II também alertou do problema do desprezo das normas litúrgicas: “Temos a lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma litúrgica pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Uma certa reação contra o ‘formalismo’ levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem não obrigatórias as ‘formas’ escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja e do seu magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes completamente impróprias.Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na celebração eucarística. Constituem uma expressão concreta da autêntica eclesialidade da Eucaristia; tal é o seu sentido mais profundo. A liturgia nunca é propriedade privada de alguém, nem do celebrante, nem da comunidade onde são celebrados os santos mistérios. O apóstolo Paulo teve de dirigir palavras àsperas à comunidade de Corinto pelas falhas graves na sua celebração eucarística, que tinham dado origem a divisões (skísmata) e à formação de facções ('airéseis) (cf. 1 Cor 11, 17-34). Atualmente também deveria ser redescoberta e valorizada a obediência às normas litúrgicas como reflexo e testemunho da Igreja, una e universal, que se torna presente em cada celebração da Eucaristia. O sacerdote, que celebra fielmente a Missa segundo as normas litúrgicas, e a comunidade, que às mesmas adere, demonstram de modo silencioso mas expressivo o seu amor à Igreja. Precisamente para reforçar este sentido profundo das normas litúrgicas, pedi aos dicastérios competentes da Cúria Romana que preparem, sobre este tema de grande importância, um documento específico, incluindo também referências de caráter jurídico. A ninguém é permitido aviltar este mistério que está confiado às nossas mãos: é demasiado grande para que alguém possa permitir-se de tratá-lo a seu livre arbítrio, não respeitando o seu caráter sagrado nem a sua dimensão universal” (Papa João Paulo II, Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, n.° 52).
Nesse sentido também a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos: “Assim, não se pode calar ante aos abusos, inclusive gravíssimos, contra a natureza da Liturgia e dos sacramentos, também contra a tradição e autoridade da Igreja, abusos que em nossos tempos, não raramente, prejudicam as Celebrações litúrgicas em diversos âmbitos eclesiais. Em alguns lugares, os abusos litúrgicos se têm convertido em um costume, no qual não se pode admitir e se deve terminar” (Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instrução Redemptionis Sacramentum, n.° 04).

[24] É interessante observar como se enganam aqueles que tentam justificar sua postura laxista como devoção intimista. Ao se ver a pessoa completamente relaxada, atirada num banco de igreja, por vezes deitada mesmo, questiona-se: “mas, por que estás assim”, ao que é respondido, em outras palavras, que é porque se está concentrando em Deus, fazendo a oração interiormente, ou coisa que o valha. No entanto, quando essa mesma pessoa se concentra no trabalho, no estudo ou numa prova, a postura é outra, recolhida e absolutamente direcionada para o objeto de trabalho ou estudo. A conclusão é de que se trata, no mínimo, de uma imaturidade da pessoa. Evidentemente, a atenção dada na oração interior não era a mesma dada para o estudo ou trabalho no momento de concentração. Por vezes, pode-se estar em uma postura mais relaxada dentro de uma igreja, por cansaço, por exemplo. Entretanto, não há por que alegar que é fruto de uma oração mais sincera porque espontânea. Ainda, em momentos solenes como a Santa Missa ou uma adoração, deve-se buscar lutar visceralmente contra o cansaço ou o que quer que nos enfraqueça a postura. Afinal, se eu amo mesmo, isso se manifesta justamente nesses pequenos sacrifícios.
[25] Diz a Instrução Geral Sobre o Missal Romano: “Os gestos e posições do corpo, tanto do sacerdote, do diácono e dos ministros como do povo, devem contribuir para que toda a celebração resplandeça pelo decoro e nobre simplicidade, de maneira que se compreenda a verdadeira e plena significação de suas diversas partes e se favoreça a participação de todos. Deve-se, pois, atender às diretrizes desta Instrução geral de da prática tradicional do rito romano e a tudo que possa contribuir para o bem comum espiritual do povo de Deus, de preferência ao próprio gosto ou arbítrio...” (IGMR, n.° 42).Disse-o de forma magnífica Pio XII, sem negar que o principal culto é o interno: “Todo o conjunto do culto que a Igreja rende a Deus deve ser interno e externo. É externo porque o exige a natureza do homem composto de corpo e alma; porque Deus dispõe que ‘pelo conhecimento das coisas visíveis sejamos atraídos ao amor das invisíveis’; porque tudo o que vem da alma é naturalmente expresso pelos sentidos; e ainda porque o culto divino pertence não somente ao particular mas também à coletividade humana e conseqüentemente é necessário que seja social, o que é impossível, no âmbito religioso, sem vínculos e manifestações exteriores; e, enfim, porque é um meio que põe particularmente em evidência a unidade do corpo místico, acrescenta-lhe santos entusiasmos, consolida-lhe as forças, intensifica-lhe a ação: ‘se bem que, com efeito, as cerimônias, em si mesmas, não contenham nenhuma perfeição e santidade, são todavia atos externos de religião que, como sinais, estimulam a alma à veneração das coisas sagradas, elevam a mente à realidade sobrenatural, nutrem a piedade, fomentam a caridade, aumentam a fé, robustecem a devoção, instruem os simples, ornam o culto de Deus, conservam a religião e distinguem os verdadeiros dos falsos cristãos e dos heterodoxos” (Papa Pio XII, Carta Encíclica Mediator Dei, n.° 20).Da mesma forma o Papa João Paulo II: “Convém reconhecer que a aplicação da reforma litúrgica encontrou algumas dificuldades devido sobretudo a um contexto pouco favorável, caracterizado por uma tendência a privatizar o âmbito religioso, por um certo rechaço de toda instituição, por uma menor presença visível da Igreja na sociedade, por um questionar a fé pessoal. Pode-se supor também que o passar de uma mera assistência — as vezes bem mais passiva e muda — a uma participação mais plena e ativa tenha sido para alguns uma exigência demasiado forte, pelo que tem surgido atitudes diversas e inclusive opostas à reforma. Por consequência, alguns têm acolhido os novos livros com uma certa indiferença ou sem tratar de compreender nem de fazer compreender os motivos das mudanças; outros, por desgraça, se fecharam de maneira unilateral e exclusiva nas formas litúrgicas anteriores, consideradas por alguns desses como única garantia de segurança na fé. Outros, finalmente, promoveram inovações fantasiosas, distanciando-se das normas dadas pela autoridade da Sé Apostólica o pelos Bispos, perturbando assim a unidade da Igreja e a piedade dos fiéis, em contraste, as vezes, com os dados da fé” (Papa João Paulo II, Carta Apostólica Vicesimus Quintus Annus, n.° 11, tradução livre do espanhol do site oficial do Vaticano, www.vatican.va).E ainda: “Movida por este elevado sentido do mistério, compreende-se como a fé da Igreja no mistério eucarístico se tenha exprimido ao longo da história não só através da exigência duma atitude interior de devoção, mas também mediante uma série de expressões exteriores, tendentes a evocar e sublinhar a grandeza do acontecimento celebrado. Daqui nasce o percurso que levou progressivamente a delinear um estatuto especial de regulamentação da liturgia eucarística, no respeito pelas várias tradições eclesiais legitimamente constituídas” (Papa João Paulo II, Carta Encíclica Ecclesia de Eucaristhia, n.° 49).O Papa Bento XVI também exorta acerca do tema: “Ao ressaltar a importância da arte da celebração, consequentemente põe-se em evidência o valor das normas litúrgicas. Aquela deve favorecer o sentido do sagrado e a utilização das formas exteriores que educam para tal sentido, como, por exemplo, a harmonia do rito, das vestes litúrgicas, da decoração e do lugar sagrado. A celebração eucarística é frutuosa quando os sacerdotes e os responsáveis da pastoral litúrgica se esforçam por dar a conhecer os livros litúrgicos em vigor e as respectivas normas, pondo em destaque as riquezas estupendas da Instrução Geral do Missal Romano e da Instrução das Leituras da Missa. Talvez se dê por adquirido, nas comunidades eclesiais, o seu conhecimento e devido apreço, mas frequentemente não é assim; na realidade, trata-se de textos onde estão contidas riquezas que guardam e exprimem a fé e o caminho do povo de Deus ao longo dos dois milênios da sua história. Igualmente importante para uma correta arte da celebração é a atenção a todas as formas de linguagem previstas pela liturgia: palavra e canto, gestos e silêncios, movimento do corpo, cores litúrgicas dos paramentos. Com efeito, a liturgia, por sua natureza, possui uma tal variedade de níveis de comunicação que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade. A simplicidade dos gestos e a sobriedade dos sinais, situados na ordem e nos momentos previstos, comunicam e cativam mais do que o artificialismo de adições inoportunas. A atenção e a obediência à estrutura própria do rito, ao mesmo tempo que exprimem a consciência do caráter de dom da Eucaristia, manifestam a vontade que o ministro tem de acolher, com dócil gratidão, esse dom inefável” (Papa Bento XVI, Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, n.° 40)Ainda a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos; “A observância das normas que têm sido promulgadas pela autoridade da Igreja, exige que concordem entre si pensamento e a voz, ações externas e a intenção do coração. A mera observância externa das normas, como resultado evidente, contraria a essência da sagrada Liturgia, com a que Cristo quer congregar a sua Igreja, e com ela formar ‘um só corpo e um só espírito’. Por isto, a ação externa deve estar iluminada pela fé e a caridade, que nos unem com Cristo e nos unem aos outros, e suscitam nos outros a caridade com os pobres e necessitados. As palavras e os ritos litúrgicos são expressão fiel, amadurecida ao longo dos séculos, dos sentimentos de Cristo, nos ensinando a ter os mesmos sentimentos que Ele, conformando nosso pensamento com suas palavras, elevamos ao Senhor nosso coração. Quando se fala nesta Instrução, intenciona-se conduzir a esta conformação de nossos sentimentos com os sentimentos de Cristo, expressados nas palavras e ritos da Liturgia” (Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instrução Redemptionis Sacramentum, n.° 5).

[26] O Papa João Paulo II diz com clareza da centralidade do Sacrifício Salvífico e de ser a Santa Missa sua renovação: “O primeiro princípio é a atualizacão do Mistério pascal de Cristo na liturgia da Igreja, porque ‘do lado de Cristo adormecido na Cruz nasceu o sacramento admirável da Igreja inteira’. Toda a vida litúrgica gira em torno do sacrifício eucarístico e aos outros sacramentos, pelos quais chegamos à fonte mesma da salvação (cf. Is 12, 3). Devemos, portanto, estar muito conscientes de que pelo ‘mistério pascal de Cristo, fomos sepultados com ele na morte, para ressuscitar com ele para uma vida nova’. Quando os fiéis participam da Eucaristia hão de compreender verdadeiramente que ‘cada vez que se celebra o memorial da morte do Senhor, realiza-se a obra de nossa Redenção’ e nessa consciência os Pastores devem formá-los com empenho constante para celebrar cada domingo a obra maravilhosa que Cristo levou a cabo no mistério de sua Páscoa, para que, a sue turno, anunciem-na ao mundo. no coração de todos os pastores e fiéis a noite pascal deve voltar a ter sua importância única, até o ponto de ser verdadeiramente a festa das festas no ano litúrgico.Já que a morte de Cristo na Cruz e sua ressurreição constituem o centro da vida diária da Igreja. E as vestes de sua Páscoa eterna, a Liturgia tem como primeira função conduzir-nos constantemente através do caminho pascal inaugurado por Cristo, no qual se aceita morrer para entrar na vida.Para atualizar seu mistério pascal, Cristo está sempre presente na sua Igreja, sobretudo nas ações litúrgicas. A Liturgia é, por conseguinte, o ‘lugar’ privilegiado do encontro dos cristãos com Deus e com quem Ele enviou, Jesus Cristo (cf. Jn 17, 3). Cristo está presente na Igreja orante reunida em seu nome. Precisamente este fato é o que fundamenta a grandeza da assembléia cristã com as consquentes exigências de acolhida fraterna —que chega até o perdão (cf. Mt 5, 23-24)— e de decoro nas atitudes, nos gestos e nos cantos.O mesmo Cristo está presente e atua na pessoa do ministro ordenado que celebra. Ele não está investido somente de uma função, mas, em virtude da Ordenação recebida, foi consagrado para atuar ‘in persona Christi’. A tudo isso deve corresponder uma atitude interior e exterior, inclusive nos ornamentos litúrgicos, no local que ocupa e nas palavras que pronuncia.Cristo está presente em sua palavra proclamada na assembléia e que, comentada na homilia, deve ser escutada com fé e assimilada na oração. Tudo isso deve se refletir também na dignidade do livro e do lugar destinado à proclamação da Palavra de Deus; bem como na compostura do leitor, que deve estar sempre consciente de que é o porta-voz de Deus ante seus irmãos.
Cristo está presente e atua por meio do Espírito Santo nos sacramentos e, de modo singular e eminente (sublimiori modo), através das espécies eucarísticas no sacrifício da Missa, e também fora da celebração, quando estas se conservam no tabernáculo para a comunhão —particularmente dos enfermos— e para a adoração dos fiéis. Sobre essa presença real e misteriosa, é de responsabilidade dos pastores recordar frequentemente em suas catequeses a doutrina da fé, da qual devem viver os fiéis e que os teólogos estão chamados a aprofundar. A fé nessa presença do Senhor implica uma atitude exterior de respeito na igreja, —lugar sagrado onde Deus se manifesta em seu mistério (cf. Ex 3, 5)— sobretudo durante a celebração dos sacramentos, pois as coisas santas devem ser tratadas sempre santamente” (Papa João Paulo II, Carta Apostólica Vicesimus Quintus Annus, n.°s 6-7, tradução livre do espanhol do site oficial do Vaticano, www.vatican.va).
[27] Como se vê, complementa e se liga inevitavelmente com o sentido sacrificial, dado que é alimento de eternidade. Ora, temos a eternidade por causa da Sua Salvação...

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